JOVENS VÃO PAGAR CONTA
Professor e analista de tendências, Scott Galloway compara cenário da pandemia a ‘Jogos Vorazes’ e defende ‘mais milionários e menos bilionários’
O Estado de S. Paulo – 23 Aug 2020
Professor defende menos bilionários e mais milionários.
Quem nasceu em uma família pobre em qualquer região do Brasil provavelmente não terá uma vida melhor. Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômica), o tempo médio de mobilidade social de um brasileiro das camadas menos abastadas para atingir a média da classe média nacional é de, pasmem, 9 gerações. A vida como ela é retira a palavra esperança da língua portuguesa.
Quanto mais aprofundo meu interesse em buscar soluções definitivas para a redução das nossas obscenas desigualdades, mais solidifica a certeza de que, para não ser uma equação de soma zero, a educação deveria ser a prioridade número um do Estado.
Hoje o resgate da esperança, da mobilidade social e da geração de oportunidades ainda depende do acaso, da sorte. Como a que colocou o professor Gustavo Bezerra no caminho de Wanderson e Ewerton. Para ser mais preciso, não exatamente no caminho, mas em uma sala de aula da escola estadual Dario Gomes de Lima, a única no distrito de Fátima, município de Flores, a mais de 400 km do Recife.
Ambos vêm de famílias humildes e têm histórias cheias de reviravoltas. Ewerton nasceu em Salgueiro, também em Pernambuco. Mudou-se com a família para Fátima quando tinha 11 anos. A mãe, Valdilene, é costureira. O pai, pastor, morreu num acidente há três anos. Mora com a mãe e o irmão, Josué, 13. Wanderson nasceu em Planaltina, cidade-satélite de Brasília. A mãe, Maria José, é empregada doméstica. O pai, Adaelson, agricultor. Em 2008, pai e mãe se separaram – e Wanderson migrou para Fátima com o pai e o irmão, William, 14. Plantam mandioca, milho e feijão.
E foi por lá que o professor de 27 anos instigou em sala de aula seus alunos a encontrar e resolver um problema no povoado de 2,5 mil moradores. E entre um e outro invento, surgiu um modelo 100% sustentável de produção de biodiesel a partir do óleo de cozinha. À época com 15 anos, a dupla de alunos criadores dessa ideia nunca havia nem sequer pensado sobre o que é a ciência e a sua função no mundo.
Hoje, quase três anos depois, a ideia de transformar em biodiesel o óleo usado – que antes era descartado irregularmente e agredia o meio ambiente – deu certo. Rendeu à dupla o 1.º lugar da Feira Brasileira de Jovens Cientistas 2020 na categoria ciências exatas e um reconhecimento da embaixada norte-americana. Tudo isso levou Ewerton e Wanderson a virar referência no povoado – e a despertar crianças e adolescentes da comunidade rural para a educação, para a ciência. Uma transformação possível graças à vocação e à provocação de um bom professor.
Poucos meses atrás e 7 mil quilômetros distante da sala de aula do professor Gustavo, um burburinho movimentava os corredores da Stern School da New York University, uma das mais prestigiosas universidades do mundo. Os alunos do segundo ano do MBA (Master in Business Administration) espichavam o olhar em direção ao lado oposto do longo corredor que leva à sala de aula. Com passos firmes, figurino básico, careca reluzente que emoldura uma grossa armação preta de um óculo estiloso, lá vinha o professor Scott Galloway.
Assim como o professor Gustavo, o professor Galloway é uma unanimidade entre seus alunos. Sua área de influência, porém, transbordou a sala de aula e ganhou o mundo. Galloway foi nomeado “um dos 50 melhores professores de escolas de negócios do mundo” pela Poets & Quants e eleito um dos Líderes Globais do Amanhã pelo Fórum Econômico Mundial.
Conhecido por antecipar tendências e fazer análises agudas de cenários, especialmente sobre a disrupção de novas tecnologias, ele atuou em conselhos de administração de empresas como Urban Outfitters, Eddie Bauer e The New York Times. E é também autor dos best-sellers Os Quatro: Apple, Amazon, Facebook e Google. O Segredo dos Gigantes da Tecnologia e A Álgebra da Felicidade: Notas sobre a Busca por Sucesso, Amor e Significado.
Os professores sempre tiveram especial destaque na minha vida. Sou, afinal, filho de dois deles. Nos últimos anos, me reaproximei das salas de aula no intuito de ouvir e aprender sobre áreas que entendo necessárias para as transformações que o Brasil precisa. Por isso, aliás, os docentes têm merecido especial destaque nesta série de conversas que tenho tido ao longo da pandemia e compartilhado no Estadão. Yuval Harari, Esther Duflo, Michael Sandel e Peter Diamandis, todos esses pensadores de vanguarda são professores. E hoje é a vez de Scott Galloway.
- Nos últimos anos, você tem antecipado comportamentos e acertado previsões, principalmente em relação ao universo da tecnologia. Posto isso, gostaria de começar nossa conversa evocando seu lado “mediúnico” e te perguntar como você avalia o impacto do coronavírus?
A covid-19 é muito mais um acelerador do que um agente de mudança. Basta escolher qualquer forte tendência na economia, no mundo dos negócios, na sociedade, e adiantá-la em dez anos. Claramente, a questão mais evidente é a da desigualdade de renda. Nos EUA, o 1% mais rico concentrou 93% da renda nacional dos últimos 10 anos. Nós vimos essa tendência se acelerar neste ano e, da noite para o dia, estamos chegando a uma distopia. Se você tem uma renda de mais de US$ 100 mil no ano, há uma probabilidade de 60% de que você possa trabalhar de casa e de apenas 10% de que você seja demitido. Ou seja, você está seguro, tem acesso a assistência médica etc. Mas, se você ganha menos de US$ 40 mil no ano, a probabilidade de você trabalhar de casa é de apenas 10% e a de perder o emprego é de 40%. Então, o que muitos norte-americanos e economistas ocidentais não querem admitir é que os muito mais ricos não só estão bem, mas eles estão no seu “auge”. A população mais pobre não tem a mesma renda, não tem o mesmo acesso a assistência médica, tem que se colocar em situações de risco para trabalhar, não tem quem cuide dos seus filhos enquanto trabalham. Então, de um dia para o outro, algumas tendências bastante prejudiciais se aceleraram.
- Você trafega muito bem no mundo bilionário da tecnologia, discorre com muita fluidez e assertividade. Queria, então, te desafiar a refletir não sobre a riqueza, mas, sim, sobre a pobreza. Mesmo sendo uma das maiores economias do planeta, o Brasil também está no topo do ranking dos países mais desiguais. A pandemia veio para iluminar ainda mais essas nossas desigualdades. Não só do mais rico para o mais pobre, mas de acesso, de oportunidade, de educação, digital, de saúde, entre tantas outras. Somos um país de contrastes. Ao mesmo tempo que temos mais de 200 milhões de chips de celulares ativos, temos mais de 100 milhões de pessoas sem coleta de esgoto, ou 30 milhões sem água tratada. Não há dúvida que, nas últimas décadas, a tecnologia colocou a humanidade em um patamar de qualidade de vida jamais visto. Ainda assim, não conseguimos endereçar desigualdade abissais que estão em inúmeros recortes da sociedade. Qual a reflexão que você faz sobre isso?
Como comunidade global, nós progredimos bastante até 5 ou 10 anos atrás. O número de pessoas que vivem na miséria diminuiu pela metade em 10 anos – e a Organização Mundial da Saúde estimava que isso levaria 20 anos. Infelizmente, nossas políticas econômicas mais recentes decidiram gastar quase todo o capital excedente em basicamente duas coisas: guerras intermináveis no Oriente Médio e corte dos impostos dos ricos. Nós temos cada vez mais lucro nas mãos de menos pessoas. Então, enquanto a economia global cresceu e gerou uma tremenda prosperidade, nós não tivemos muito progresso. Nós abandonamos as pessoas comuns. Se você nasceu numa família rica, se você é bom no que faz, se você entende a tecnologia, essa é a melhor época para viver nos EUA, como no Brasil. Crianças comuns como eu nos anos 1980 ainda tinham oportunidades notáveis, e havia cada vez mais oportunidades para a classe média brasileira nos anos 1990 e nos anos 2000 também. Mas nossas políticas fiscais resultaram na economia do filme Jogos Vorazes – os que ganham muito têm a melhor das vidas, nunca tiveram tanta renda. Acho importante ter pessoas ricas. É motivador e bom para a economia. Mas nós precisamos produzir menos bilionários – e mais milionários. Aqui nos EUA, temos um indivíduo que vale o PIB da Noruega. O que nós preferimos? Um homem com US$ 165 bilhões ou 165 mil pessoas, a população de uma cidade pequena, todas milionárias?
A boa notícia é que o sistema, quando há tamanha concentração, acaba por se autocorrigir. A má notícia é que isso costuma se dar por meio de três mecanismos: guerra, fome ou revolução. E é possível dizer que, nos EUA, já estamos vendo dois desses três mecanismos. A onda de fome avança junto com o coronavírus. E nós temos uma leve revolução aqui. Os protestos nunca foram tão grandes nem tão amplos. Se poucas pessoas concentram todo o lucro, em algum momento o resto se cansa, e aí nós entramos em momentos muito preocupantes da nossa história. O capitalismo é o melhor sistema que existe, mas, se ele não se basear na empatia, se ele não se basear em algum nível de distribuição de oportunidades, ele não será sustentável. E sinto que estamos vendo isso nos EUA agora, e, de certa maneira, no Brasil também. O que você acha, Luciano?
- Eu concordo. Aqui no Brasil, tenho tentado ir além de expressar a minha opinião. Tenho pensado o que podemos efetivamente fazer para mudar essa realidade. E, na minha opinião, nós temos primeiro que reconhecer nossos privilégios. Nós somos brancos, tivemos todas as oportunidades na vida, ganhamos dinheiro. E acho que, se esse 1%, no caso do Brasil, que sempre foi acusado de omissão quando o debate era sobre como reduzir desigualdades, não se empenhar para ser parte da solução, vamos colapsar em breve. Podemos juntar todos os filantropos que mesmo assim o ponteiro das desigualdades não vai mudar. A meu ver, só o Estado tem o poder exponencial de transformação social, e o Estado é comandado por políticas, e quem faz as políticas são os políticos. Nós precisamos tentar seduzir boas cabeças a entrar na política e mostrar que elas devem servir ao seu país por um período. Temos que trazer as pessoas mais brilhantes para a política, não para ficar a vida toda lá, mas para passar 5 ou 10 anos e ajudar de alguma maneira. Em uma outra conversa neste mesmo ‘Estadão’, ouvi do geneticista Peter Diamandis que, “se você quer ficar bilionário, ajude 1 bilhão de pessoas”.
Há o estereótipo de que esse 1% são pessoas maléficas que só querem ficar em casa e encontrar maneiras de tirar mais dinheiro dos pobres. Mas o que eu descobri é que, de modo geral, as pessoas mais ricas são generosas e muito preocupadas. Além disso, elas são inteligentes. Elas sabem que, se a desigualdade de renda crescer muito, há uma grande chance de aparecerem governos populistas que, com o apoio das pessoas cansadas de serem abusadas, vão confiscar as suas riquezas. Pense em quantas vezes, na América Central, um grupo pequeno de pessoas agregou muito poder e usou esse poder para concentrar uma quantidade desproporcional de renda, e então os populistas elegeram um líder que tomou esses bens, tomou as propriedades privadas deles. Se sete famílias valem mais do que todo o Hemisfério Sul do planeta, em algum momento esse Hemisfério vai encontrar uma maneira de tomar as riquezas dessas sete famílias. Acho que nos EUA, e talvez no Brasil, mesmo os ricos se dão conta de que precisam se comprometer com uma divisão do lucro. O que é vergonhoso nos EUA é que nós somos o país mais rico do mundo, mas 40% da nossa população não consegue sobreviver três ou quatro semanas sem receber algum dinheiro. Nós estamos completamente dependentes do governo nesta época de pandemia, e o que descobrimos é que não investimos o suficiente nas nossas instituições, nos centros de controle e prevenção de doenças, nas redes locais de assistência médica, no sistema de segurança social. E isso deixou metade dos nossos irmãos vulneráveis. É um fracasso da nossa sociedade.
Uma das ações-chave para acabar com isso é o governo parar de auxiliar o poder privado e começar a conspirar virtuosamente junto com ele. Eu não sei como é no Brasil, mas cerca de um quarto do nosso PIB vai para o governo por meio de impostos. E nós podemos ajudar pensando, ok, não podemos ter um terço das famílias com a alimentação e as crianças ameaçadas, não podemos deixar que as escolas e as universidades entrem num sistema onde o 1% mais rico tem 77 vezes mais chance de ter uma educação de elite do que alguém que vem de uma família de baixa renda. Então, eu acho que dentro do 1% mais rico, e eu sou um deles, há uma disposição de pagar mais impostos, o reconhecimento de que o que nos trouxe até aqui não vai nos levar até onde precisamos chegar.
Nós precisamos de liderança, de mais empatia, de mais cooperação global. Se você pensar na Segunda Guerra Mundial, tantas nações se uniram e trabalharam juntas… Se os russos, os ingleses e os americanos se acertaram durante a Segunda Guerra Mundial, não há motivo para não nos unirmos e trabalharmos juntos numa vacina, por exemplo. Não há razões para não compartilharmos conhecimento. O superpoder da nossa espécie é a cooperação, e eu gosto de pensar que vamos melhorar quando aceitarmos esse superpoder e começarmos a cooperar.
- Já que puxei o tema da desigualdade… Talvez a mais grave e crítica delas no Brasil é em relação à qualidade da educação. Pessoalmente não enxergo uma transformação exponencial no Brasil enquanto o ensino do pobre não tiver qualidade similar ao do rico. Pelo que tenho lido e ouvido das suas ideias mais recentes, você enxerga de forma muito apocalíptica as transformações que a pandemia irá impor aos formatos atuais de educação. Você poderia falar um pouco sobre isso?
Nos EUA, a educação era o lubrificante da classe média. Ou seja, se você estudasse direito, você teria uma vaga numa escola estadual de baixo custo. O filho de uma mãe solteira imigrante que nunca ganhou mais de US$ 40 mil no ano, que nasceu e morreu como uma secretária, tinha a oportunidade de estudar na UCLA e de fazer uma pós-graduação na Berkeley – e a taxa escolar de um total de 7 anos era de US$ 7 mil. Mas aumentamos tanto o preço que agora muitas universidades cobram mais de US$ 250 mil por uma taxa escolar de quatro anos. É uma época muito complicada para as famílias assumirem essa dívida. E isso coloca muita pressão sobre o jovem. Ele não consegue abrir um negócio, não assume riscos. Começa logo a trabalhar em grandes empresas para quitar o financiamento, o que atrapalha a economia, porque nas empresas pequenas é que estão a inovação e o avanço nos empregos. Nós gostamos de pensar que os EUA são uma meritocracia, e que qualquer pessoa pode ser o que quiser, mas, na verdade, nós somos um sistema de castas – diferentemente da Europa, aqui o sistema não é baseado no seu sobrenome, mas na sua universidade.
Nos EUA, agora existem só dois tipos de pessoas que frequentam as melhores universidades: os filhos dos ricos e alguns jovens muito notáveis de 15 a 17 anos, que, nessa idade, já têm uma patente, construíram poços na África ou são capitães dos seus times de futebol. E a realidade é que 99% de nós não somos notáveis. Se você pensar nas empresas que valem centenas de bilhões de dólares, como Amazon, Apple, Facebook e Google, o que todas têm em comum? Todas elas se encontram a uma distância percorrível de bicicleta das melhores universidades do mundo. As nossas melhores universidades não são apenas o epicentro de grandes oportunidades, mas também o epicentro do lucro.
- Li que, se você nasce numa família pobre brasileira, vai levar nove gerações para alcançar a média da classe média. Então, se você precisa de nove gerações para melhorar a sua vida, você perde o direito de sonhar. Nós vivemos tempos muito desafiadores no Brasil. Quando você comenta sobre escolas, oportunidades, sonhos, e em como isso é estruturado nos EUA, eu lembro de uma fala sua sobre família e valores. Eventos que deslocam muita energia tendem a gerar transformações importantes. A pandemia que todos estamos vivendo era algo inimaginável. Como você entende que será o impacto dela da porta para dentro das famílias?
Há uma grande oportunidade, que eu chamaria de um despertar, baseado num senso de mortalidade. A curva da felicidade se parece com um sorriso. Entre 0 e 25 anos, todos nós somos muito felizes – nós surfamos, vamos a festas, temos amigos, nos apaixonamos, temos o coração partido, assistimos ao Brasil na Copa do Mundo, vemos Guerra nas
Estrelas, todas essas coisas maravilhosas da infância e juventude. Depois, dos 25 aos 40 anos, de modo geral, temos os anos menos felizes, porque, apesar do que os seus pais te disseram, você não vai emplacar um hit musical, um perfume com seu nome, você não vai ser um senador, você não vai ser o que quiser… Você vai ter filhos, e a sua rotina vai ser muito estressante. Aí alguma coisa começa a acontecer entre os 45 e os 55 anos: você percebe que a vida vai acabar, que você alcançou algum sucesso econômico, que você é saudável, que você é incrivelmente abençoado e, então, você passa a sentir prazer em coisas que antes não sentia – na alimentação, na natureza, na arte, na música, nos relacionamentos. E as pessoas mais felizes do mundo são aquelas que deveriam ser menos felizes, porque são as menos saudáveis: os idosos, mas porque eles adquiriram essa visão em perspectiva. Tudo isso que agora nós estamos vivendo, de certa maneira, acelerou o tempo e nos adiantou em décadas essa visão em perspectiva. A pandemia nos oferece a oportunidade de conseguirmos reparar e solidificar relacionamentos em poucas semanas. Isso porque a crise nos empurrou questionamentos. Tenho a relação que gostaria com os meus irmãos? E se tiver que me despedir deles por videochamadas por causa da doença? Estou no relacionamento amoroso que gostaria de estar? Não terei permitido que desatenção, competitividade e outras bobagens atrapalhassem minhas amizades?
O segredo da felicidade, segundo qualquer estudo, é o número e a profundidade dos relacionamentos que o indivíduo tem. Por causa da pandemia, existem hoje muitas pessoas sofrendo psicologicamente, fisicamente e economicamente. Se você se aproxima de seus irmãos, de seus amigos, de seus pais, e ajuda a cuidar deles, você fortalece essas relações.
- Um outro best-seller seu discorre sobre as quatro grandes empresas globais de tecnologia: Apple, Google, Facebook e Amazon. Todas elas, de diferentes maneiras, têm presença expressiva no Brasil. A pandemia já gerou transformações exponenciais nas relações digitais do nosso dia a dia. Seja na forma que trabalhamos, estudamos, nos relacionamos, compramos, nos alimentamos e etc… O que está mudando na área da tecnologia e para essas quatro gigantes?
Nos EUA, o e-commerce cresceu cerca de 1% ao ano na década de 2000. Em março deste ano, aproximadamente 18% das vendas de varejo aconteciam por meios digitais. A partir daí, em apenas 10 semanas de pandemia, esse índice foi de 18% para 28%. Ou seja, nós assistimos a uma década de progresso do e-commerce em menos de três meses. A porcentagem de pedidos online e entregues por delivery saltou de 2% para 20%. O que esses dados significam em termos de cadeia de suprimentos, de armazenagem, de transações, de empacotamento, de perecibilidade? Vai haver uma transição bilionária das lojas terciárias para as lojas online.
Há várias outras grandes oportunidades de investimento. Estamos vendo um progresso imenso na telemedicina e na assistência remota de saúde, graças ao uso de smartcâmeras, de tecnologias portáteis pelas quais pode ser feito o rastreamento de contatos ou conseguir informações a respeito de uma possível contaminação. Teremos oportunidades no ensino online remoto também, já que descobrimos que o câmpus universitário não precisa ser o lugar em que entregamos toda a educação. Quanto às quatro grandes, infelizmente elas são monopólios sem regulamentação. Eu acho que deveria existir mais de dois sistemas operacionais de placa-mãe, acho que deveria existir mais de uma empresa de e-commerce. Tradicionalmente, nos EUA, nós quebrávamos essas empresas antes que elas chegassem a esse nível de concentração de poder, mas, por algum motivo, nós deixamos elas avançarem. Então, a minha advertência para o Brasil é que não deixem essas empresas invadirem certos setores da economia.
- Seus artigos, seu podcast e mesmo seus disputados cursos da NYU orbitam muito sobre a sociedade norte-americana. Por isso lhe pergunto: qual a imagem e percepção que você tem em relação ao Brasil? E qual é a imagem que você acha que atualmente estamos passando para o mundo?
Na Europa, quando você vê o noticiário, dois terços são sobre o mundo e um terço és obre o país específico do noticiário. Nos EUA, é ao contrário: em dois terços, falamos sobre nós mesmos e, no outro terço, sobre o resto do mundo. Os norte-americanos são muito narcisistas. Agimos como se fossemos EUA e os sete anões, quando se trata das outras partes do mundo. De modo geral, eu diria que a impressão dos norte-americanos sobre o Brasil era muito otimista nos anos 1990 e 2000. Na época do Bric, havia uma animação com o Brasil, a Rússia, a Índia e a China. Mas os últimos dez anos foram uma década perdida para o Brasil e para a América Latina, em virtude de políticas deficientes e fatores macroeconômicos.
O País não alcançou a expectativa de prosperidade e o potencial que muita gente na Europa enos EUA acreditava que alcançaria. Fora isso, achoque muitos de nós pensam no Brasil como um aliado, como um país cujas pessoas têm um entusiasmo incrível pela vida, um país com muitas belezas naturais. Todo ano eu vou surfar com amigos em Floripa e sempre agarro as oportunidades para ir a São Paulo. É um país com vantagens incríveis, porque a marca dele no mundo é a de um lugar de beleza extraordinária, com relevância cultural e, economicamente, à espera de decolar. Então, eu diria que, de modo geral, nossa visão do Brasil é a de um potencial não alcançado.
- Nossos países, Brasil e EUA, não passaram no teste da pandemia. São dois exemplos de países mal liderados nesta crise de saúde. Como você vê o impacto disso na imagem de ambos os países e no arranjo geopolítico mundial?
Pensando no Brasil, as pessoas querem ir ao Brasil, as pessoas querem trabalhar com brasileiros, há uma ideia global dos valores e das belezas do Brasil, e isso é uma vantagem enorme. Quanto aos EUA, dois terços das pessoas que ganham uma certa quantidade de dinheiro sonham em ir para os EUA. Querem comprar produtos dos EUA, querem colocar os filhos em escolas americanas. Então, a imagem de uma nação para o mundo é um bem muito importante. Não há como negar que a marca do Brasil e a marca dos EUA sofreram um desgaste expressivo durante a pandemia. Os EUA são a nação mais rica do mundo, e o Brasil também é relativamente rico, mas nós sairemos desta pandemia com números desproporcionais de infectados e de mortos. Tudo isso diante do fato de que nós gostamos de pensar que nossas culturas são inovadoras, que nossa assistência médica é robusta, que temos economias fortes. E, além de tudo, os EUA e o Brasil tiveram mais tempo para se preparar para isso do que a China e a Europa. Nossas reputações globais sofreram golpes muito fortes. Você pode dizer que isso aconteceu por vários motivos, desde a politização das massas até o enfoque total na economia, assistências médicas caras, porque esse vírus não é um vírus de oportunidades iguais, ele tem atacado os pobres e os negros mais intensamente. E, além disso, houve uma negação completa por parte das nossas lideranças em tentar entender o que realmente estava acontecendo, em reconhecer a ciência, em respeitar a verdade. Eles acharam que podiam ignorar tudo. O nosso presidente disse essas exatas palavras: “Eu acho que isso vai desaparecer em um passe de mágica”. Nossas nações vão sair disso menos saudáveis, menos respeitadas. Nossos filhos e os nossos netos vão pagar o preço por isso.
Em vez de nos adiantarmos em investimentos agressivos e sacrifícios, nos EUA estamos lidando com novos impostos, com novos desafios para gerar trilhões de dólares de estímulo econômico. E, como nós diminuímos os impostos dos ricos nos últimos 20 anos, para financiar esse estímulo nós teremos que emprestar dinheiro dos nossos filhos e dos nossos netos por meio de dívidas públicas, coisa que outras nações não precisam fazer, porque elas quebraram a curva da contaminação. O que nós decidimos fazer nos EUA e no Brasil foi falar para os mais jovens: “queremos que vocês trabalhem mais, queremos que vocês passem menos tempo com as suas famílias para financiar o reparo dos erros que estamos cometendo”. Não estamos apenas tomando más decisões nos dois países; nós estamos decidindo que quem pagará por esses erros são os mais pobres, neste primeiro momento, e depois os nossos filhos e netos, porque estamos financiando o estímulo econômico por meio de dívidas. Vamos sair disso substancialmente enfraquecidos. O bastão da liderança global saiu dos EUA e foi para a China. A China é um país mais denso, tomou as medidas necessárias para controlar a pandemia, lidou com isso de modo eficiente e rápido. Já nos EUA, nós pensamos que somos excepcionais, que somos diferentes, pensamos confortavelmente que isso não chegaria até aqui. Acho que no Brasil também teve isso, algo fez vocês acreditarem que eram excepcionais, que seria possível escapar do vírus – vocês pegaram da gente um pouco do que eu chamo de vírus da arrogância. O problema é que o coronavírus não recebe esse memorando dizendo o quanto somos excepcionais nos EUA ou no Brasil. Nossa população também tem que ser responsabilizada. Nossos avós fizeram grandes sacrifícios na Segunda Guerra Mundial. Muitos dos nossos pais, nos EUA, fizeram sacrifícios no Vietnã. Mas parece que a nossa população não quer fazer os sacrifícios necessários. Nos EUA, um terço dos homens não usa máscara regularmente, porque eles acham que isso os faz parecerem fracos. Precisamos lidar com algumas questões difíceis, não só sobre os nossos líderes, os quais falharam em todos os aspectos no trabalho principal deles, que era nos manter seguros. Precisamos também olhar no espelho e nos perguntarmos se tivemos a garra e se tomamos as atitudes necessários. Usar uma máscara não é para se proteger, é para proteger as pessoas vulneráveis para as quais você poderia passar o vírus.
- Você acha que o crescimento de Joe Biden na corrida presidencial americana pode significar o enfraquecimento dessa narrativa, que se multiplicou em várias democracias mundo afora, terraplanista, obtusa, negacionista, truculenta e polarizadora? Este techpopulismo raso e barato está perdendo espaço?
Se você olhar para a nossa história, a combinação do nacionalismo com uma economia fraca pode levar a lugares muito tenebrosos. O lado bom disso é que talvez a próxima geração de líderes no Brasil e nos EUA volte a valorizar o superpoder da nossa espécie, a cooperação. E implementar políticas que promovam os sacrifícios necessários para ajudar os nossos conterrâneos a saírem da pobreza, mudar essa tendência poderosa e resistente de desigualdade, começar a sair das trincheiras. Espero que, da mesma maneira que nós fizemos mal para o mundo com esse nacionalismo, que inclusive pode se tornar fascismo se não tomarmos cuidado, espero que possamos cauterizar, mudar de direção, contornar essas tendências perigosas. Espero que tudo isso comece aqui no dia 3 de novembro, que comecemos a rejeitar essa odiável tendência nacionalista e polarizadora que temos nos EUA. As pessoas ainda olham para os EUA como uma liderança, e espero que uma vitória retumbante do Biden em novembro possa ser a fagulha de uma explosão ao redor do mundo que faça as pessoas se unirem novamente para tirar os pobres da miséria. Espero que, com isso, possamos aproveitar as forças uns dos outros e parar de focar nas nossas diferenças para focar no que nos une. Que seja, um momento de rejuvenescimento, de recuperação e de alianças fortes.
- Muito obrigado pela conversa, foi uma honra compartilhar ideias com você e ouvir suas reflexões sobre o mundo na pandemia e no pós-pandemia.
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