A natureza e o verdadeiro escândalo da Covid-19
O Estado de S. Paulo – 11 May 2020
FAREED ZAKARIA TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
O verdadeiro escândalo não é o que a China nos fez, e sim aquilo que, juntos, estamos fazendo com o planeta.
Ogoverno Trump tenta fazer os Estados Unidos embarcarem em uma onda de sentimento antichinês porque o coronavírus pode ter sido acidentalmente transmitido de um laboratório em vez de um mercado. Mas a pergunta mais ampla que deveríamos fazer é por que há tantos casos de vírus transmitidos de animais para humanos nos anos mais recentes. Sars, Mers, ebola, gripe aviária e gripe suína começaram como vírus de animais e infectaram humanos. Por quê?
Peter Daszak é um ecologista especializado em doenças e conhecido “caçador de vírus”. Ele explora cavernas de morcegos usando equipamento de proteção completo para recolher a saliva e o sangue dos animais para determinar as origens de um vírus. Conversando comigo, ele deixou claro: “Todos os dias, fazemos coisas que tornam as pandemias mais prováveis. Temos que entender que não se trata apenas da natureza, mas do que estamos fazendo com a natureza.”
Lembremos que a maioria dos vírus vem de animais. O Centro para a Prevenção e Controle de Doenças estima que três quartos das novas doenças humanas se originaram em animais.
O coronavírus pode simplesmente ter vindo de um dos mercados e açougues da China onde animais silvestres são abatidos e vendidos, prática que deveria ser proibida em todo o mundo. Mas, conforme a civilização humana se expande, estamos também destruindo o hábitat dos animais silvestres, trazendo-os cada vez mais perto de nós. Cientistas acreditam que isso está tornando muito mais provável a transmissão de doenças dos animais para os humanos.
O vírus da covid-19 parece ter se originado nos morcegos, que são incubadores particularmente prolíficos para os vírus. Os cientistas ainda estão estudando o que aconteceu, mas, em outros casos, vimos como o avanço humano pode levar os morcegos a procurarem alimento nas fazendas, onde infectam os animais da pecuária.
Há outros rumos para os patógenos. O mais provável está ligado ao nosso insaciável apetite por carne. Conforme os habitantes do mundo enriquecem, eles tendem a aumentar seu consumo de carne. Cerca de 80 bilhões de animais terrestres são abatidos todos os anos para satisfazer o consumo de carne do mundo. A maioria dos animais da pecuária de corte está em fazendas industriais. São milhares de animais em um espaço apertado, em condições quase perfeitas para a incubação e disseminação de um vírus, que se torna mais agressivo a cada salto. Sigal Samuel, da Vox, cita o biólogo Rob Wallace: “As fazendas industriais são a melhor maneira possível de selecionar os patógenos mais perigosos”.
As fazendas industriais são também o marco zero de novas bactérias resistentes a antibióticos, que são outro caminho para a infecção humana generalizada. Animais criados em fazendas industriais são bombardeados com antibióticos, o que significa que as bactérias sobreviventes são altamente potentes. Todos os anos, cerca de 2,8 milhões de americanos adoecem por causa de bactérias resistentes a antibióticos, dos quais 35.000 morrem.
E temos a mudança climática, que intensifica todos esses processos. Conforme alteramos ecossistemas e hábitats naturais, doenças antes dormentes podem vir à tona, para as quais não temos imunidade.
Em maio de 2015, dois terços da população mundial de saigas, um pequeno antílope, morreram subitamente no intervalo de poucos dias. Uma bactéria chamada Pasteurella multocida, que há muito vivia no animal sem causar-lhe mal, tornou-se subitamente virulenta. Por quê? Ed Yong, da Atlantic, explica que a região estava se tornando mais tropical, e 2015 foi um ano particularmente quente e úmido. “Quando a temperatura aumenta demais e o ar fica muito úmido, as saigas morrem. O clima é o gatilho, e a Pasteurella éa bala.” O verdadeiro escândalo não é o que a China nos fez, e sim aquilo que, juntos, estamos fazendo com o planeta – algo que só podemos deter juntos.
ARTIGO373