Quando a vida é uma loteria
A preocupação com a desigualdade é essencial para definir o que queremos do nosso futuro
Luís Eduardo Assis, O Estado de S. Paulo – 03 de fevereiro de 2020
“Não olhem para nós procurando o fim da desigualdade social”, afirmou o ministro Paulo Guedes recentemente. Não se pode dizer que o ministro tergiversa com palavras ambíguas. Mais do que uma verdade inconteste (nenhum governo pode acabar com a desigualdade), tamanha clareza indica que a administração atual considera este tema prescindível. Economistas liberais, na sua versão mais radical, acreditam que o Estado deva se abstrair de qualquer tipo de intervenção que estimule o que chamam de “engenharia social”, contentando-se com a platitude de que qualquer sociedade é inexoravelmente desigual em razão da distribuição não homogênea de talento, sorte e disposição para o trabalho.
Mas a desigualdade está longe de ser um tema restrito aos partidos de esquerda. Na última reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos, foi apresentado um extenso estudo (The Global Social Mobility Report – 2020) que alerta sobre as consequências da concentração de renda. Na visão dos autores, a desigualdade crescente leva à perda de confiança nas instituições, ao desencanto com a política e à erosão do contrato social. A recomendação é a criação de políticas (sim, políticas intervencionistas) que possam garantir que cada cidadão tenha uma chance justa para desenvolver plenamente seu potencial.
No Brasil, a loteria da vida define em grande parte a trajetória de cada um de nós. Um jovem nascido na periferia que tenha apenas o ensino médio em escola pública tem diminuta probabilidade de ter uma vida melhor que a de seus pais. Não por acaso, no ranking de desigualdade apresentado pelo estudo estamos em 60.º lugar, num conjunto de 82 países, logo atrás de Sri Lanka. Mantido o nosso atual índice de mobilidade, uma família com renda entre as 10% mais pobres demorará nove gerações para atingir a renda mediana brasileira. Na Dinamarca são duas gerações. Na Suécia, três. A mobilidade social não é apenas um lenitivo para apaziguar um difuso sentimento de injustiça. Há também consequências econômicas. Se o grupo de países incluídos no estudo conseguir elevar o índice de mobilidade social em 10 pontos até 2030, o PIB terá crescido 4,4% adicionais. Como chegar lá? Por meio de um sistema tributário que taxe mais os mais ricos (o que não temos aqui) e uma política de gastos que priorize a educação e a saúde (o que também não temos). O avanço tecnológico torna ainda mais difícil o desafio, já que o capital humano intelectual é a força motriz do crescimento econômico e uma baixa mobilidade impede o melhor aproveitamento de talentos. No Brasil, o “gap” educacional entre crianças ricas e pobres nunca foi tão grande, o que prenuncia tempos de maior cizânia.
As agruras do Brasil também são evidenciadas em estudo de 2019 do banco Credit Suisse sobre a distribuição da riqueza (não da renda, como é usual). Ali se constata que o 1% mais rico da população brasileira detém 49% do total da riqueza líquida do País. Entre os países analisados, perdemos apenas para a Rússia. Em 2019, estima-se que 259 mil brasileiros tinham patrimônio líquido superior a US$ 1 milhão, 42 mil a mais que no ano anterior. É bom lembrar que o rendimento médio do brasileiro caiu 3,6% em dólares no ano passado.
“De cada um, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo sua necessidade” é o mantra marxista desbotado que inspirou a utopia de uma sociedade igualitária. A História demonstrou seu inevitável fracasso. Ganharíamos todos se o governo brasileiro parasse de esgrimir contra um adversário ideológico que já nada significa. Mais que uma fábula moral da esquerda, a preocupação com a desigualdade é essencial para definir o que queremos do nosso futuro.
ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM
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