Liberdade para CRIAR
Michel Laub busca em novo livro entrar na cabeça dos personagens para captar valores do Brasil
Em ‘Solução de Dois Estados’, escritor soma a produções recentes da literatura brasileira contemporânea que começam a explorar as transformações sociais e políticas resultantes na eleição de 2018
Entrevista com Michel Laub, escritor
Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo – 10 de outubro de 2020
O escritor gaúcho Michel Laub aproveitou os primeiros meses da quarentena imposta pelo coronavírus para acertar os detalhes finais do seu novo romance, Solução de Dois Estados, agora disponível nas livrarias. Como o presente da trama se passa em 2018, a doença ainda não aparece, mas o livro se soma a produções recentes da literatura brasileira contemporânea que começam a explorar as transformações sociais e políticas resultantes na eleição daquele ano.
Sempre preocupado com a linguagem dos seus escritos, o autor conta aqui a história de dois irmãos, Raquel e Alexandre, criados em São Paulo sob o mesmo teto, mas cujas trajetórias e escolhas na vida se afastam quase que diametralmente. Raquel, vítima de bullying desde pequena por causa do seu corpo, tem tendências artísticas e vai buscar na vida no exterior ferramentas para lidar com os traumas do passado; Alexandre fica com a mãe, e passa a ditar a própria vida sob a égide da meritocracia, reproduzindo o liberalismo à brasileira.
Michel Laub
Michel Laub. Livro é engenhosamente narrado como um documentário para a televisão alemã Foto: Renato Parada
No ano da eleição, Raquel, convidada em um evento patrocinado por um banco, sofre uma agressão física no palco do debate, e as incertezas que rondam o incidente funcionam como fio condutor do livro.
“O processo todo demorou mais do que eu esperava, então o que era uma história futurista (eu não tinha ideia de que o Bolsonaro iria ganhar a eleição, por exemplo) acabou virando uma espécie de romance histórico recente (que se passa num mundo pré-quarentena)”, explica Laub sobre seu oitavo romance, publicado também pela Companhia das Letras. “Mas as questões trazidas pelos personagens independem desses marcos. Eu queria escrever sobre perdão, perguntar se é possível conciliar visões de mundo tão opostas em temas como sexo, religião, identidade, responsabilidade individual. São essas visões que dividem de fato a sociedade brasileira, isso vai além do noticiário do momento.”
Solução de Dois Estados é narrado em primeira pessoa pelos personagens, que falam para uma documentarista alemã sobre o incidente – alinhavando assim uma costura das preocupações nacionais com o contexto internacional, outra exploração interessante do romance.
Michel Laub respondeu a algumas questões do Estadão por e-mail sobre o romance, o primeiro desde 2016, ano em que lançou O Tribunal da Quinta-Feira, finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte.
Você fez algum tipo de pesquisa específica para a elaboração dos dois personagens do livro?
Fiz um pouco. Boa parte do livro se passa em universos distantes do meu. Li a respeito e conversei com pessoas que conhecem bem a periferia de São Paulo, a rotina das academias de ginástica, o meio das artes visuais. Mas tomei algumas liberdades na descrição desses ambientes, considerando que vale aquilo que os narradores dizem, de acordo com o estado emocional e os interesses de cada um enquanto está dizendo. O barato de escrever ficção é este: se botar na cabeça de tipos diferentes de você. É preciso pensar como esses tipos, falar como eles, é uma forma de entender o que eles representam. Se algo soa absurdo para o leitor, para esses personagens pode ser a verdade absoluta.
Em O Tribunal da Quinta-Feira, você explorava o vazamento de mensagens privadas, e aqui decide colocar os personagens em comunicação direta com o “exterior”, frente à uma câmera. O que muda no tipo de discurso que você quis empreender?
Sim, foi uma preocupação inicial: não voltar a fazer um livro sobre a dinâmica das redes sociais. É claro que isso vai aparecer uma hora ou outra, porque não há como escrever uma história contemporânea sem passar por essa dimensão. Mas eu quis falar de coisas mais concretas do que um personagem humilhado virtualmente. De certo modo, é um agravamento daquilo que ocorre no Tribunal. O Solução fala de violência concreta, de uma barbárie política da qual você não escapa mais desligando o celular.
Personagens “bolsonaristas” começam a aparecer na literatura brasileira, e embora o Alexandre não fale isso explicitamente, o contexto é claro. Você acha que imaginar e fazer literatura a partir desse ponto de vista pode ajudar a preencher os espaços que a análise política de anos anteriores praticamente ignorou?
A dimensão da análise política é pública, você precisa trabalhar com dados mais ou menos objetivos. Na literatura, você tem a liberdade de ir além disso, tentar ver o que se esconde em níveis mais íntimos, ambíguos. O bolsonarismo também é essa subjetividade: uma linguagem, um modo de vida, uma escolha de valores que se quer afirmar. O Solução tenta captar isso e o oposto disso, por contraste ou eventual semelhança, porque a barbárie surge também daquela história particular, irreproduzível em outro contexto que não o daqueles irmãos, daquela família. Então, nesse sentido ao menos, é uma visão do problema que você só vai encontrar nesse livro.
Como tem sido a questão profissional para você nestes últimos seis meses?
Vivo uma quarentena de classe média, então tenho o privilégio material. Isso se estende ao trabalho, claro. Mas psicologicamente passo pelos mesmos altos e baixos de todo mundo. A dimensão desse estrago a gente só vai ter no futuro, inclusive dentro da produção artística em geral. A vida piorou muito nos últimos anos por causa de crise econômica, barbárie política. Espero que o trauma da quarentena não se some a essa desumanização progressiva.
Como é que você tem se sentido, enquanto escritor de ficção, no Brasil de 2018 para cá?
Por um lado, a ficção parece ter cada vez menos espaço, falta tempo e disposição para se dedicar a ela. Por outro, é na arte que a gente vai achar o registro mais rico da sensibilidade da nossa época. Se algo pode mudar no futuro, nem que seja na consciência de cada um, é partindo daí. Os últimos anos foram terríveis nessa área, não há dúvida, mas pelo menos uma coisa foi interessante: todo mundo descobriu que a cultura é que determina a disputa política, e não o contrário. Nos anos 1990, o debate público era pautado por economistas tecnocratas, cujo horizonte máximo eram números que fechavam as contas públicas e coisas assim. Hoje, temos uma guerra de valores bem mais ampla, que passa pelo que se diz na arte, na educação, existe todo um debate sobre quem somos de verdade, o que queremos como país. Quem trabalha com cultura precisa abraçar essa briga. O desfecho do Solução traz essa ideia. Dentro do possível, eu a considero uma forma de otimismo.
ARTIGO99