“Nosso modelo político não está dando certo”
Para o autor do conceito “presidencialismo de coalizão”, país precisa de reformas urgentes em Lei de Impeachment e “recall”
Valor Econômico – Por Cristian Klein – 24/06/2021
Autor do conceito “presidencialismo de coalizão”, que descreve a forma de funcionamento do sistema político brasileiro desde a Nova República, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches lamenta que a visão otimista que se tinha de todo o arcabouço institucional – por onde o país superou a hiperinflação e reduziu desigualdades – esteja hoje em xeque e dê lugar ao ceticismo e ao risco de volta ao autoritarismo. “Nosso modelo político não está dando certo”, diz.
Em sua opinião, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já cometeu crime de responsabilidade, mas uma série de distorções impede que o sistema de freios e contrapesos – entre eles Legislativo, Judiciário, Procuradoria-Geral da República e Polícia Federal – funcione a contento. “No Congresso, o único instrumento que está funcionando é a CPI da Covid. Toda a ação de freio e contrapeso à ação arbitrária do presidente da República vem da parte do Judiciário, e de forma limitada”, afirma.
O sociólogo critica o enorme poder monocrático do presidente da Câmara dos Deputados, do qual depende a abertura do processo de impeachment. “Isso pode se transformar numa arma de cambalacho, de troca, de negociação com o governo, e de chantagem, como aconteceu com o Eduardo Cunha e agora acontece com o Arthur Lira. A defesa que ele [Lira] faz da não tramitação do pedido de impeachment é uma defesa parcial”, afirma.
Abranches sugere uma revisão na Lei do Impeachment, de 1950, de modo que a aceitação do pedido seja feita pela comissão especial, já prevista para analisar a admissibilidade, e não pela decisão única do presidente da Câmara. Mas defende que o instrumento seja usado em último caso. O ideal, argumenta, é que o mandato conferido pelos eleitores também seja retirado por eles, com a introdução do “recall”, como ocorre com os governadores nos Estados Unidos.
Para o pesquisador, Arthur Lira é um bom exemplo de um Centrão que apoia Bolsonaro, mas se dividiu. “É um jogo de risco, pela primeira vez o Centrão foi forçado a fazer um investimento de risco”, diz.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O Congresso tenta aprovar, a toque de caixa, um extenso e controverso pacote de reforma política. O que acha da iniciativa?
Sérgio Abranches: Há muitas pesquisas que dizem que raramente as reformas políticas atingem a intenção dos reformadores. Mas fizemos [em 2017] as duas tentativas mais importantes do ponto de vista de melhorar o quadro de competição partidária, com a cláusula de barreira e a proibição das coligações proporcionais. Essa última era a coisa mais importante e é exatamente o que estão querendo acabar, porque os partidos que sempre se valeram da carona [para eleger parlamentares] perderam essa chance.
Valor: Que outras alterações seriam necessárias?
Abranches: Uma mudança urgente, que não está sendo cogitada, é uma revisão da Lei de Impeachment [de 1950]. O estatuto do impeachment já foi usado duas vezes. Pode vir a ser usado mais vezes no futuro. Mas ele claramente é vítima de uma série de imprecisões e distorções por conta de lei que não é inteiramente abrigada pela Constituição. Pelo menos duas questões precisam ser rapidamente resolvidas.
Valor: Quais?
Abranches: A primeira é o poder monocrático do presidente da Câmara, que faz com que o pedido de impeachment fique na gaveta dos presidentes a cada momento, e isso pode se transformar numa arma de cambalacho, de negociação com o governo, e de chantagem, como aconteceu com o Eduardo Cunha e agora acontece com o Arthur Lira. O presidente da Câmara deveria ter como ação, pura e exclusivamente, a de verificar se o pedido está formalmente de acordo com as regras e encaminhar imediatamente à deliberação do colegiado, da comissão especial. Com essa arbitrariedade introduzida no instituto do impeachment a tramitação já começa de forma tão politizada que é praticamente impossível não ter um processo não controverso. Essa atitude de controle autoritário das instituições de freios e contrapesos por Bolsonaro é perigosíssima”
Valor: Por quê?
Abranches: Porque é uma decisão exclusivamente pessoal do presidente da Câmara. Todo o processo depende de uma pessoa, que pode usar esse enorme poder de abrir uma investigação sobre o presidente da República do jeito que ele achar conveniente para seus próprios interesses pessoais, sem pensar no interesse partidário e coletivo da nação, sobretudo.
Valor: É o que está acontecendo hoje com o Lira?
Abranches: Com certeza. Ele disse que a atitude dele tem que ser imparcial, mas toda a defesa que ele faz da não tramitação do pedido de impeachment é uma defesa parcial. Já tem evidência suficiente de que se poderia investigar crime de responsabilidade do presidente. Para não fazer o histórico dos desvios de comportamento do Bolsonaro é só ver o episódio desta semana em que ele agrediu a imprensa e ofendeu a repórter da TV Vanguarda Laurene Santos. Aquilo dali está configurado claramente no item sete do capítulo cinco da Lei do Impeachment, que detalha os crimes de improbidade administrativa. É falta de decoro. Ofender o cargo que ocupa. É serial, ele faz isso permanentemente. Tem indícios formais que admitem o juízo do impeachment.
Valor: Qual a segunda questão a ser resolvida?
Abranches: Vamos ter uma sucessão de pedidos de impeachment sempre, porque é o único recurso que o presidencialismo tem. O impeachment não é um bom instrumento, até porque tem um vício de legitimidade na origem. Porque o mandato do presidente da República não é conferido pelo Legislativo, mas pelo voto direto popular. O recall, o referendo confirmatório, é um instrumento muito mais apropriado e legítimo, porque devolve à sociedade o direito de cancelar o mandato que ela conferiu àquela pessoa. Eu prefiro.
Valor: Onde ele é praticado?
Abranches: Os Estados Unidos têm o recall no nível estadual. Foi ele que permitiu, por exemplo, que o [ex-ator Arnold] Schwarzenegger fosse governador da Califórnia, no primeiro mandato dele, depois que o antecessor foi removido pelo recall.
Valor: Sempre se fala que impeachment, para além da decisão do presidente da Câmara, requer condições políticas. Qual é o limite do governismo do Lira?
Abranches: Ele vai até o final [do governo] a não ser que haja um movimento de fuga do apoio do grupo do qual ele faz parte ao Bolsonaro. E a reciprocidade do Bolsonaro em relação a ele também. Achei muito emblemática a declaração do Bolsonaro ontem [anteontem] dizendo que tem dois poderes no Brasil, o Judiciário de um lado e “nós do lado de cá”.
Valor: Não vê divisão de poderes…
Abranches: Ele considera que o Executivo e o Legislativo fazem parte do mesmo bloco e como antagônicos ao Judiciário. Porque o Judiciário está cumprindo suas funções e o Legislativo não está. Na verdade, o grande problema de você ter esse controle mais forte do Legislativo pelos interesses do presidente e sua linha auxiliar no Congresso é exatamente o fato de que isso neutraliza boa parte dos instrumentos de “checks and balances”, de freios e contrapesos, que o Congresso representa. O único que está funcionando, e funcionando contra a opinião do Arthur Lira e para desgosto do [presidente do Senado] Rodrigo Pacheco (DEM-MG) é a CPI da Covid. Mas, na verdade, hoje toda a ação de freio e contrapeso à ação arbitrária do presidente da República vem da parte do Judiciário, e de forma limitada.
Valor: Por quê?
Abranches: Porque ele precisa ser provocado para isso. Precisa da iniciativa de quem tem legitimidade para interpor ações de inconstitucionalidade ao Supremo, para que ele aja. Isso porque o outro instrumento importante, no papel de contrapeso aos outros Poderes, é a Procuradoria-Geral da República. Pois é a única instituição com relativa autonomia, no sistema republicano brasileiro, que pode agir de ofício, sem ser provocado. Quando você tem um procurador-geral controlado pelo presidente, aí há outra mudança que acho fundamental, que é instituir a lista tríplice compulsória. Quando o procurador-geral é devedor do presidente da República, como é o [Augusto] Aras, e ainda tem a expectativa de ganho futuro com a nomeação para o Supremo Tribunal Federal, ela para de ter iniciativa. Cria um obstáculo à ação do Ministério Público, que é o único que poderia iniciar ações de investigação para fatos relevantes de abuso de poder das autoridades públicas. É urgente a revisão da Lei de Impeachment, para acabar com o poder monocrático do presidente da Câmara”
Valor: Torna-se mais defensor do que a própria Advocacia-Geral da União.
Abranches: É, exatamente. E aí o Aras lista todas as investigações que ele está fazendo. Mas seria bom confrontar as investigações que ele abre com as que ele arquiva. Abrir só não é suficiente. É preciso dar sequência.
Valor: Nosso sistema é mais disfuncional do que se pensava?
Abranches: Temos um processo de desequilíbrio nas relações entre os Poderes que precisa ser revisto. Houve uma ênfase muito grande na funcionalidade do sistema e na estabilidade da governança por parte dos que estudaram o presidencialismo de coalizão e que enfatizaram muito a necessidade do presidente ter poder superior ao poder do Legislativo. Mas vejo aí um certo desconserto entre essa visão da governança, digamos eficiente, eficaz, estável, e a democracia.
Valor: Ela está ameaçada?
Abranches: Esse excesso de poder nas mãos do presidente, quando enfeixado por uma mentalidade autoritária como a do Bolsonaro, leva a um projeto autoritário. Pode inclusive fazer com que a democracia seja corroída por dentro, que é o que está acontecendo hoje em todos os regimes presidencialistas e semipresidencialistas em todo o mundo. Essa tentativa da extrema-direita de corroer as instituições democráticas e reduzir a eficácia dos direitos individuais e do Estado de direito democrático é feita por dentro.
Valor: De que forma?
Abranches: Recentemente, dois delegados que estavam fazendo investigações contra o Ricardo Salles [ministro do Meio Ambiente, demitido ontem], que contrariam tanto o Salles quanto o presidente, foram removidos. Essa atitude de controle autoritário das instituições de freios e contrapesos é perigosíssima. É preciso de fato fortalecer esses instrumentos, garantir os recursos necessários. E não estou falando de dinheiro, mas da obrigatoriedade da lista tríplice para a independência do Ministério Público, de estabelecer uma autonomia, mais forte, da Polícia Federal – sou contra polícias muito autônomas, porque isso é outro perigo – e de rever a Lei do Impeachment. Eu diria que esse é o arcabouço de proteção do presidencialismo de coalizão democrático.
Valor: E o excesso de cargos e recursos à disposição do Executivo?
Abranches: Outra coisa é que temos que lidar com a supercentralização de recursos nas mãos do governo federal. Está na hora de fazermos uma revisão do pacto federativo para redistribuir obrigações, direitos e deveres, entre governo federal, Estados e município.
ARTIGO731