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Unidos pelos inimigos

Últimas semanas testaram a hipótese do presidente Joe Biden, de que a ênfase na rivalidade com a China e com a Rússia seria a chave para a coesão dos aliados europeus e asiáticos sob a liderança americana

Lourival Sant’Anna, O Estado de S.Paulo, 20 de junho de 2021

A hipótese do presidente Joe Biden, de que a ênfase na rivalidade com a China e com a Rússia seria a chave para a coesão dos aliados europeus e asiáticos sob a liderança americana e o caminho para acordos com os republicanos no Congresso, passou nos testes de realidade das duas últimas semanas.

No dia 8, o Senado aprovou a destinação de US$ 242 bilhões a programas para capacitar os EUA a enfrentar a concorrência tecnológica da China, com pesquisa e desenvolvimento (P&D) em setores como computação quântica, inteligência artificial, biomedicina, semicondutores e telecomunicações. O pacote foi considerado pelo jornal The New York Times “a mais ampla lei de política industrial da história dos EUA”.

Argumentou-se que os EUA gastam menos de 1% de seu PIB com P&D; a China, 2,4%. A capacidade instalada de fabricação de semicondutores dos EUA caiu de 37% do total mundial, em 1990, para 12% atualmente. Já China, Taiwan, Coreia do Sul e Japão respondem por 75% da produção total. Mas o número mais eloquente foi a votação: 68 a favor e 32 contra. Significa que 18 senadores republicanos votaram a favor. Apoio bipartidário, num tema tão carregado de ideologia, como é o caso da política industrial, é algo raro nas últimas décadas no Congresso americano.

Encontro

Presidente dos EUA Joe Biden e o presidente russo, Vladimir Putin, durante reunião, em Genebra, na Suíça.  Foto: Patrick Semansky/AP

“No mundo todo, governos autoritários estão sentindo cheiro de sangue na água”, disse o senador Chuck Schumer, líder da maioria democrata, ecoando a tese de Biden, segundo a qual os EUA lideram uma disputa entre democracia e autocracia. “Eles acreditam que democracias débeis como a nossa não conseguem se unir e investir em prioridades nacionais da maneira como pode um governo de cima para baixo, centralizado e autoritário”, continuou Schumer. “Estão torcendo para fracassarmos para que eles possam agarrar o manto da liderança econômica global e dominar as inovações.”

No Senado, propostas que não tenham a ver com o orçamento precisam da maioria qualificada de 60 votos, e os democratas têm apenas 50, mais o desempate da vice-presidente Kamala Harris. O projeto vai agora a votação na Câmara, onde requer maioria simples, e os democratas têm quatro deputados a mais. Munido desse mandato, Biden se lançou para as cúpulas com o G-7, a União Europeia, a Otan e o presidente russo, Vladimir Putin, além de reuniões com o britânico Boris Johnson, o turco Recep Tayyip Erdogan e os três bálticos. Biden ainda convidou a alemã Angela Merkel para visitá-lo na Casa Branca.

Em todas as conversas, Biden seguiu esse fio condutor: os aliados devem se unir para enfrentar o bullying da China e da Rússia. Da reunião do G-7 participaram como convidados Austrália, Índia, Coreia do Sul e África do Sul. Os dois primeiros compõem, juntamente com EUA e Japão (membros do G-7), o Quad, grupo formado para fazer frente à China no Indo-Pacífico.

O comunicado final da Otan definiu a Rússia como “ameaça” e a China, como “desafio sistêmico à ordem internacional”. Os 30 membros da aliança atlântica, que une EUA, Canadá e Europa, comprometeram-se com a defesa também do Japão e da Coreia do Sul, que estão na área de projeção da China, e enfrentam a ameaça de sua aliada, a Coreia do Norte.

O G-7 abraçou ainda duas propostas de Biden: um imposto único global para grandes empresas e a doação de centenas de milhões de doses de vacina aos países pobres. Na primeira cúpula dos EUA com a UE desde 2014, o contencioso em torno dos subsídios à americana Boeing e à europeia Airbus, que durava 17 anos, foi resolvido, abrindo caminho para a retirada de tarifas punitivas sobre outros produtos. Parafraseando um estrategista de Bill Clinton na campanha de 1992, que recomendou ao candidato democrata focar na economia, Biden parece ter encontrado o seu mote: são os inimigos, estúpido.

É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS

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