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EUA perderam a guerra no Afeganistão há muito tempo

O Estado de S. Paulo – 18 Aug 2021

FAREED ZAKARIA / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL É COLUNISTA

Enquanto assistimos a tragédia se abater sobre o Afeganistão, devemos primeiramente dispensar a fantasia de que os EUA estavam mantendo o país em paz com apenas poucos milhares de soldados, que essa situação poderia ter sido administrada com baixo comprometimento. Ao longo dos últimos dois anos, isso parecia ser verdade para os americanos, porque Washington havia feito um acordo com o Taleban e, como resultado, o grupo deliberadamente não atacou os EUA e as forças da coalizão.

Para os afegãos, porém, a guerra se intensificava. No verão de 2019, o Exército do Afeganistão e a força policial do país sofreram as maiores baixas em duas décadas de guerra. Foi também o pior período em relação a mortes de civis em uma década. Em 2018, quando os EUA mantinham no Afeganistão quatro vezes mais soldados do que este ano, os combates foram tão brutais que 282 mil civis afegãos foram obrigados a deixar suas casas em regiões rurais. A frustração com o governo afegão e seus padrinhos dos EUA estava crescendo. Uma pesquisa do governo americano, realizada naquele ano, mostrou que o apoio dos afegãos à presença militar dos EUA era de 55%, enquanto uma década antes era de 90%.

Você deve ter escutado pessoas sugerindo que a retirada americana deveria ser postergada um pouco. Considere a reportagem do Guardian, de 2016: “Forças afegãs perdem terreno para o Taleban, apesar do adiamento da retirada dos militares americanos”. A reportagem relatava que os militares americanos haviam persuadido Barack Obama a adiar a retirada das tropas, que ele já havia adiado no ano anterior; mas, apesar de ter o robusto apoio das forças americanas e um significativo poder de fogo aéreo, o controle do governo central diminuiu para somente cerca de 65% dos distritos do país.

Alguns dados que tenho citado vêm de um poderoso novo livro, The American War in Afghanistan (“A Guerra Americana no Afeganistão”), de Carter Malkasian, que serviu como oficial civil na Província de Helmand e acabou promovido a conselheiro do chefe do Estado-maior Conjunto das Forças Armadas. Ao expor as conclusões de seu livro em um ensaio na revista Politico, ele começou ressaltando que há pouca dúvida de que os EUA perderam a guerra. Em 20 anos, os americanos gastaram US$ 2 trilhões, comandaram no auge das operações 130 mil soldados da coalizão, constituíram uma força de segurança de 300 mil homens no Afeganistão (pelo menos no papel) e usaram o mais sofisticado e mortífero armamento aéreo do mundo. Ainda assim, não conseguiram derrotar as mal equipadas forças do Taleban, de talvez 75 mil combatentes. Por quê?

Malkasian tenta responder a essa pergunta que, admite ele, o intrigou ao longo dos 12 anos em que esteve envolvido com o Afeganistão, onde viu “forças numericamente superiores e mais bem equipadas sendo derrotadas por combatentes sem recursos e liderança nada excepcional”. Nas semanas recentes, o fenômeno mais extraordinário foi a reação pífia do Exército e da polícia do país, cujos integrantes frequentemente fugiam assim que o Taleban entrava em seu campo de visão. A resposta de Malkasian vem de um intelectual taleban que ele conheceu em Kandahar, em 2019. “O Taleban luta por sua crença, por janat (o céu) e ghazi (matar infiéis). O Exército e a polícia lutam em troca de dinheiro.”

Os soldados afegãos certamente também não tiveram capacidade ou vontade de impedir o avanço do Taleban porque não tinham o equipamento e os reforços que precisavam de seus líderes. Isso não surpreende, quando levados em conta os muitos problemas do governo afegão. Ainda que eleito democraticamente, o governo afegão não contava com apoio amplo. Na eleição de 2019, pouco mais de 1,8 milhão de pessoas votaram, em um país de 39 milhões de habitantes. A corrupção era endêmica no Afeganistão, e os bilhões de dólares da ajuda americana, despejados por lá de maneira desordenada, pioraram muito essa situação. O governo nunca incorporou verdadeiramente a comunidade rural pashtun, de onde emana a maior parte do poder do Taleban.

Mas, acima de tudo, a legitimidade daquele governo era limitada, porque ele sobrevivia somente graças ao apoio de uma potência estrangeira. A identidade afegã é intimamente ligada à resistência contra invasões estrangeiras, particularmente invasões de infiéis – a história afegã glorifica a luta de um século contra os britânicos e a jihad contra a ateia União Soviética. É fácil usar isso para mobilizar o nacionalismo e a devoção religiosa, que alimentam a disposição de lutar e morrer. O governo de Ashraf Ghani não detinha nenhuma narrativa de poder similar capaz de inspirar suas tropas.

Os EUA têm visto o Taleban ganhar terreno no Afeganistão há anos. São ricos e poderosos o suficiente para terem sido capazes de mascarar essa realidade por meio de um fluxo constante de contraataques e ataques aéreos, com mísseis e drones. Mas nada disso mudou o fato de que, apesar de todos os esforços, os americanos não conseguiram vencer o Taleban. Os EUA poderiam ter se retirado de maneira melhor, mais gradativamente, em outra época, após mais negociações? Certamente. Mas a verdade nua e crua é esta: não há como perder a guerra sem perder a elegância.

A verdade nua e crua é esta: não há como perder a guerra sem perder a elegância

ARTIGO806

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