Por isso os EUA continuam a produzir fracassos
O Estado de S. Paulo, 24 Aug 2021
FAREED ZAKARIA TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO / É COLUNISTA
Ao longo dos anos, a burocracia tomou conta do aparato de segurança do governo americano, diminuindo sua eficiência
Se deseja uma estatística para explicar o fracasso da retirada dos EUA do Afeganistão, é essa: o Conselho de Segurança Nacional se reuniu 36 vezes desde abril para debater o assunto. E o mais notável, esse número foi divulgado para a mídia para ilustrar o quão bem o governo vinha estudando o caso. A estrutura no campo das tomadas de decisão de política externa se transformou em um dinossauro, com um corpo imenso e pouco cérebro, uma burocracia onde o processo se tornou político.
Quanto mais reuniões você realiza, menos eficiente uma organização se torna. “Os delegados ali estiveram em reuniões que duraram horas e horas sem fim. Isso tem um custo”, lembrou Frances Townsend, que foi assessora de Segurança Interna do presidente George W. Bush. Pessoas perdendo um tempo precioso em reuniões, mais falando do que executando. Tudo se reduzindo ao denominador comum menos importante. Preparação e memorandos das reuniões substituíram uma ação efetiva. O Wall Street Journal descreveu a corrida para a saída do Afeganistão assim: “O governo realizou reuniões durante meses, mas houve poucas instruções para as diversas agências governamentais sobre como se prepararem para a transição de poder”.
Os EUA combateram a Guerra Fria com uma grande burocracia, mas que, especialmente no seu topo, era surpreendentemente enxuta e eficiente. O Conselho de Segurança Nacional moderno, por exemplo, ao ser criado por Henry Kissinger, não tinha mais do que 50 pessoas. E se manteve nesse nível durante a maior parte do século 20, embora à época dos anos 2000 tenha sido ampliado para 100. Nos primeiros anos do governo de George W. Bush, esse número dobrou novamente. Sob o governo de Barack Obama, duplicou de novo. E Donald Trump o reduziu um pouco, mas o presidente Joe Biden hoje dobrou o seu número, levando a mais de 350, com muitos delegados, escalões e complexidade.
Quanto maior se torna uma organização, mais escalões ela cria. E quanto mais escalões, mais difícil fica transpô-los. Pense no Departamento de Defesa, que é algo assombroso em termos de tamanho e complexidade. Com um orçamento anual de mais de US$ 700 bilhões, provavelmente, é a maior burocracia do planeta. E cresceu vigorosamente nas duas últimas décadas.
O estudioso da Universidade de Nova York Paul Light afirma que os cinco escalões mais altos do Pentágono congregavam 363 pessoas, em 1998, aumentando para 870, em 2020. Só no nível de secretário adjunto, seu número foi de 193 para 629. Hoje, há 33 níveis de burocracia no mais alto comando do Departamento de Defesa.
Em grandes organizações, o desafio de conduzir a burocracia recebe muito mais atenção do que as decisões políticas. A informação é sempre gerada internamente – nada de fora pode se infiltrar no edifício. Essa realidade explica talvez o fato mais alarmante no caso da intervenção no Afeganistão – que durante 20 anos o governo dos EUA se enganou e enganou o mundo levando-o a acreditar que ele estava fazendo progressos e que o Exército afegão crescia em força e eficácia.
Hoje, com o fracasso evidente da política, todas as burocracias em Washington afirmam furiosamente que agiram certo. Mas consideremos o que o Pentágono vem dizendo nas duas últimas décadas. Em 2011, o general William Caldwell, então chefe do comando de treinamento no Afeganistão, afirmou que o Exército afegão era “o melhor treinado, o melhor equipado e o melhor liderado”, acrescentando que “só continuarão a melhorar com o tempo”.
Dois anos depois, o general Mark Miller, então o segundo no comando das forças americanas no Paquistão, declarou: “Estou bastante otimista quanto aos resultados, desde que as forças de segurança afegãs continuem a fazer o que vêm fazendo”. O aumento do número de soldados decidido por Obama, em 2009-2012, foi um sucesso, apesar de, em 2015, o Taleban controlar mais áreas do país como jamais foi visto desde o início da guerra.
Muitas pessoas com informações privilegiadas entendiam que a missão estava condenada ao fracasso, mas a informação ficou presa dentro da burocracia. Como o Washington Post documentou em sua reportagem Papéis do Afeganistão, as autoridades, quando pressionadas, haviam expressado seu ceticismo. Mas a narrativa oficial era sempre otimista.
“Cada ponto de dado era alterado para apresentar o melhor quadro possível”, afirmou Bob Crowley, assessor da área de contrainsurgência no Afeganistão, aos investigadores do governo. Informações externas nunca penetraram, como a do especialista do Brookings Michael O’hanlon, que concluiu que o Exército afegão tinha taxas de diminuição de 20% a 30% por causa de deserções e ferimentos.
O inspetor especial para a reconstrução do Afeganistão, repetidas vezes, falou do problema dos “soldados fantasmas” e deu o alarme chamando atenção para uma notícia da Associated Press indicando que, apesar de um número oficial de 300 mil soldados, as forças de segurança afegãs contavam na realidade com apenas 120 mil homens.
A fase número um da saída do Afeganistão foi um fracasso. A de número dois, a retirada de dezenas de americanos e afegãos, poderia ser um sucesso. As evidências até agora – leia o artigo de David Rohde na New Yorker – é que a retirada ainda é totalmente caótica, faltando uma ação eficaz. O governo ainda pode fazer com que isso aconteça, mas precisa parar de se reunir e começar a agir.
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