O campo tem muito a ensinar à cidade
Muito do que a cultura urbana contemporânea começa a descobrir e a valorizar é vivido no mundo rural brasileiro há décadas.
Nicolau da Rocha Cavalcanti, O Estado de S.Paulo, 31 de agosto de 2022
Junto com a urbanização acelerada, formou-se um olhar negativo sobre o mundo rural. Muitas vezes, ele é visto não apenas como arcaico – atrasado no tempo –, mas a expressão do que o País tem de pior: a exploração do ser humano e do meio ambiente, a tolerância com o passado escravocrata, o coronelismo. Trata-se de uma percepção reducionista e equivocada da realidade. Muito do que a cultura urbana contemporânea começa hoje a descobrir e a valorizar é vivido no campo brasileiro há décadas. Nos pastos, nas lavouras, nos terreiros de café, nos currais, nas hortas, nos pomares, nos silos de grãos, nos tratores, nas colheitadeiras, nos arados, nos arreios de couro, nas rédeas trançadas, nos carros de boi, há uma profunda sabedoria que convém não desperdiçar.
O campo conhece o valor do tempo. Nada se consegue imediatamente. No mundo rural, os frutos nunca são o resultado instantâneo do fazer. Tudo leva tempo: tudo está cadenciado pelo transcorrer das estações e das gerações. O longo prazo está sempre presente. Não há uma fazenda admirável que seja simples fruto de uma ideia espetacular, de uma operação bem-sucedida ou do aproveitamento de uma “oportunidade única”. Fazendas admiráveis, profundamente equilibradas e sustentáveis, são construídas com o trabalho abnegado de gerações.
O campo sabe também a importância do presente. É hoje que se deve semear, cuidar do umbigo do bezerro que nasceu, refazer a cerca que estragou, jogar o adubo, inseminar a novilha que está no cio, pôr cascalho na estrada para não criar um atoleiro. Há uma profunda consciência da importância de aproveitar, sem pressa e sem pausa, o dom do tempo.
O trabalho no campo tem uma dinâmica especial. Seu valor não reside no tamanho do salário ou no status social de cada tarefa. Relaciona-se diretamente com a qualidade do trabalho feito. Um pasto bem roçado, um cavalo bem amansado, um alqueire bem semeado: é isso o que faz brilhar os olhos de quem vive no campo.
A atividade rural revela uma dimensão realista do esforço humano. Trabalhar bem é condição necessária, mas não é sinônimo de aplauso, muito menos de retorno financeiro. O campo é a antítese do voluntarismo ou da mentalidade de atribuir ao empenho pessoal uma causalidade mecanicista de sucesso.
Assim, o campo ensina também o valor do risco. A cada plantio, não há segurança do que se colherá. Investem-se trabalho e dinheiro sem a certeza do resultado. A atividade rural não é tarefa monótona, sem aventura.
Nas cidades, fala-se hoje muito em mudança climática e em preservação ambiental. Essa preocupação está presente no campo há muito tempo. Antes das discussões acadêmicas e das exigências legais, muitíssimas fazendas desenvolveram práticas sustentáveis, conscientes de que a natureza exige respeito. Não se trabalha contra ela: é sempre nela, com ela e por ela. Os números da preservação ambiental no Brasil explicitam essa cooperação entre agropecuária e ecossistema. Trata-se de um caso de sucesso mundial na proteção da vegetação nativa, dos rios, do solo e das espécies animais.
O campo brasileiro também ensina o valor da inovação. A agropecuária nacional multiplicou os resultados usando os mesmos espaços de terra. Aliar produção e preservação não é um objetivo longínquo: é uma realidade. O campo utiliza de forma intensiva as inovações tecnológicas, como aplicativos de geolocalização e plataformas de gestão, e também a tecnologia no sentido clássico do termo: esse fazer inteligente e eficiente que não necessariamente usa um chip, mas sempre envolve criatividade, avaliação e correção de rumos.
O Brasil é pioneiro, por exemplo, em técnicas de correção do solo, manejo responsável (comprometido com o bem-estar animal) e melhoramento genético. Originário da Índia, o Nelore brasileiro é hoje paradigma de produtividade sustentável e rentável de produção de carne a pasto. O mesmo pode ser dito de várias raças leiteiras. Cada visita a uma fazenda, por menor que seja, é sempre ocasião de conhecer uma inovação implementada silenciosamente, sem posts nas redes sociais, mas transformadora e eficiente.
É um erro pensar na agropecuária como setor de baixa complexidade, sem valor agregado. Num cenário global de valorização do meio ambiente e da alimentação saudável, a atividade rural é cada vez mais essencial.
O campo tem, também, uma profunda ligação com a educação. Em poucos lugares cuida-se com mais esmero da transmissão de cultura e de técnica entre as gerações. Há a consciência de que ninguém começa do zero: todos podem e devem partir de onde os outros chegaram. Eis aqui outro aspecto, cada vez mais valorizado, que há muito tempo se vive no campo: a cooperação.
As cidades são espetaculares. Há nelas um mundo de oportunidades e encontros. Mas não desprezemos o campo, seu povo, seu conhecimento, suas tradições. O mundo rural não é apenas mais bucólico e conectado com a natureza. O campo brasileiro é expressão de inovação, excelência, trabalho e responsabilidade ambiental. Não é apenas passado, é poderosa referência de futuro.
*ADVOGADO E JORNALISTA
ARTIGO875