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A solução de um poeta para o mundo em crise

28r Martim Vasques da Cunha, O Estado de S.Paulo, 28/04/2023

 

Há solução para a sociedade dilacerada em que vivemos atualmente? Neste mundo atormentado por disputas políticas infinitas, que crescem sem parar, além da evidente incapacidade das nossas elites de resolver o problema da nossa mera subsistência material, tudo o que parece nos restar é o mergulho no desespero, a desistência de qualquer tipo de esperança.

Contudo, não é bem assim que o poeta americano Wendell Berry, de 88 anos, vê as coisas. Por intermédio da sua obra peculiar – poesia, romances, ensaios –, ele não só nos dá uma oportunidade para uma fuga sadia de todo esse emaranhado em que nos metemos, como também nos abre para aquilo que só a grande arte permite: a quietude do espírito.

Berry teve dois livros recentemente publicados e que mostram que ele ainda está em pleno vigor. O primeiro é Jayber Crow – que chega agora às livrarias brasileiras –, um romance comovente sobre um barbeiro, testemunha privilegiada do que acontece entre os membros da vila de Port William, lugar ficcional onde o escritor conta a história americana dos últimos 150 anos, da Guerra Civil até os nossos tempos conturbados.

O segundo é The Need To Be Whole – Patriotism and the History of Prejudice, relato escrito no final de 2022 e que mistura autobiografia e pesquisa histórica sobre como o racismo – um pecado mortal que o próprio Berry chama de “a ferida oculta” dos EUA – infectou todas as relações sociais. Em ambos os casos, o que temos são mais do que meras reflexões: são, na verdade, meditações de um homem extremamente vivido, que sabe exatamente sobre o que está escrevendo.

É claro que ajuda muito o fato de que Berry é, antes de tudo, um poeta. Isso parece ser um mero detalhe, porém é uma vantagem e tanto. É graças a esse ofício que ele pode lidar com algo que a própria poesia (em especial, a contemporânea) deixou de lado – a capacidade da literatura de compreender a existência de diversos mundos dos quais fazemos parte.

Da mesma forma que outro poeta irmão, o inglês W. H. Auden, Wendell Berry reconhece, ao ser um artesão do verso, que vivemos em três categorias de pluralidades: multidões, sociedades e comunidades. Em The Dyer’s Hand, Auden explica a diferença entre elas. As primeiras são aparentemente reais, mas sua existência é pura ilusão; nelas, o indivíduo é menos que um, é somente uma estatística, uma abstração. Já as sociedades são um sistema que apenas ama a si mesmo; ali, uma pessoa existe exclusivamente em relação a outra; retire essa conexão entre elas e qualquer vínculo social verdadeiro acaba imediatamente. Com a terceira categoria – as comunidades –, temos a união por meio de algo que transcende os seus membros, um amor que os une além da mera funcionalidade. Nela, o indivíduo é insubstituível e único – e, portanto, os integrantes ali são livres e iguais, pois, para existir tanto uma multidão como uma sociedade, a comunidade abriga diversas comunidades que, por mais diferentes que sejam, conseguem encontrar um fundo comum de comunicação e, sobretudo, respeito.

Wendell Berry abraça por completo a defesa da comunidade como fundamento de tudo que estrutura – e salva – a nossa sociedade moderna gigantesca, inchada e corrupta. Para ele, trata-se de um organismo vivo e misterioso, cujos moradores sabem muito bem o que acontece com os seus vizinhos, não por uma questão de vigilância ou maledicência, mas sim porque cada um ali tem uma responsabilidade com o seu próximo. Ao contrário do Estado Moderno, que se movimenta por interesses escusos e desejos de poder disfarçados de busca pelo Bem Comum, a comunidade vislumbrada por Berry é amada porque a democracia praticada naquele lugar é a democracia dos afetos, a mesma democracia que respeita os vivos porque sabe muito bem que eles serão os mortos do futuro.

É assim que em Jayber Crow observa a vila de Port William, a moldura ficcional criada por Berry para restaurar o que aconteceu de errado na América contemporânea. Em um romance impecável, com o ritmo plácido de um rio que reconhece perfeitamente qual é o seu curso, o poeta veste a máscara do prosador para contar a história desse sujeito que, desencantado com a vocação de ser pastor, resolve trilhar um caminho solitário e, para sobreviver, aceita o trabalho de ser o barbeiro da região. O que era para ser apenas uma função, a ser executada mecanicamente, se transforma em uma posição importantíssima, pois ele é capaz de observar a vida e a morte de todos os personagens essenciais para a existência daquela comunidade. No fim, ser o barbeiro de Port William era a sua verdadeira vocação, mesmo que isso implicasse uma vida confeccionada no silêncio e no segredo, em especial quando Berry descreve o drama interior de Crow ao se apaixonar – sem nunca declarar o seu amor – pela bela (e casada) Mattie Chatham.

Essa paixão de décadas se desdobra (e também se reflete) na contemplação amorosa de um mundo que se dissolve aos poucos. Nesse sentido, Crow é também o alter ego de Berry, que em seus poemas e, principalmente, em seus ensaios, denuncia o maior crime de todos a ser executado contra a única coisa que salva ou destrói uma comunidade: o afeto pela preservação do próprio solo. Sem o cultivo adequado da nossa terra – enfim, da nossa propriedade – nem sequer somos capazes de agir numa política pragmática minimamente decente. Para Berry, o cuidado com o solo, o lar e a terra é o que importa para a reunificação entre seres humanos extremamente pecadores e falíveis. Não à toa, em seu ensaio clássico, The Unsettling of America (1977) – que influenciou as obras de Christopher Lasch, Philip Rieff e Patrick Deneen –, ele faz uma denúncia brutal contra a máquina implacável do Estado e das grandes corporações que simplesmente destruíram, com seus especialistas e tecnologias impessoais, as comunidades, as sociedades e as multidões de todo um país (e é interessante observar que esse diagnóstico segue uma tradição similar ao que foi feito pela francesa Simone Weil na época da 2.ª Guerra com sua obra-prima O Enraizamento).

Contudo, não pensem que Wendell Berry é um “ludita”, um sujeito deslocado no tempo que não aceita o progresso histórico. Pelo contrário: ele o abraça como poucos. A única diferença é que Berry reconhece que progresso significa uma adição à nossa engenhosidade humana de praticar o bem comum, enquanto o que é vendido por nossas elites é, na verdade, uma subtração da nossa dignidade e da nossa capacidade de conquistar o mal que surge em nossos corações. É nessa dialética que o poeta medita sobre a questão espinhosa do preconceito racial em seu país, em particular no livro The Need To Be Whole, no qual ele argumenta que a “ferida oculta” dos EUA é mais uma consequência dos maus-tratos que o Estado fez com o solo que protegia seus cidadãos.

Sem um lar, sem uma terra para cuidar das suas posses materiais e espirituais, tanto os brancos como os negros ficaram impedidos de encontrar uma base moral de comunicação entre eles. A América se transformou em um campo de batalha verbal onde a linguagem é mais uma tática de ataque do que uma estratégia de convivência sadia. O maior exemplo disso é a incompreensão dos grupos de políticas identitárias, em especial o Black Lives Matter ou as facções supremacistas, que querem reescrever a história complexa e complicada da Guerra Civil, causando assim mais ódio e ressentimento entre as diversas classes sociais. Isso impossibilita também que a sociedade americana consiga permanecer dentro do verdadeiro pluralismo que somente existe quando ela se vê como uma comunidade.

A tese de Berry é polêmica, sem dúvida. Mas o que é mais polêmico vem a seguir: a cura para esse dilaceramento moral entre os cidadãos de uma única república – sejam os EUA, seja o Brasil – não virá da ajuda técnica das nossas instituições democráticas. Para o poeta, será o perdão – sim, ele mesmo, o tal do perdão que absolve nossos erros – a única ferramenta prática capaz de reunir não só os dissidentes dos nossos respectivos países, mas também a nossa psique fraturada.

O preconceito racial surge da nossa dificuldade de aceitarmos o perdão como um instrumento realmente válido. Acreditamos que ele é apenas algo “abstrato” – enquanto o ódio seria algo “concreto”. Ocorre que, para Wendell Berry, sem o perdão nada funciona – desde as comunidades em que vivemos até a arte que produzimos. E é nesse aspecto que ser um barbeiro (como Jayber Crow), um soldado, um agricultor e, enfim, um artista, ajuda mais do que atrapalha, pois são posições que lidam com o indivíduo o tempo todo e que fazem cada um conhecer o seu próximo em sua peculiaridade irredutível. O escritor sabe que sua obra de arte é a tentativa de equilibrar a liberdade e a lei que regulam os cidadãos – e que um bom poema é análogo a uma harmonia provisória que, por meio do perdão proferido pela limpidez do verbo, nos reconcilia diante da misericórdia do mundo.

É essa misericórdia que Wendell Berry recupera naquilo que ele articulou nos versos célebres de um dos seus poemas mais singelos (e mais conhecidos), intitulado O Medo do Amor. Tememos porque amamos o que iremos perder – seja como parte de uma multidão, de uma sociedade ou de uma comunidade, seja como parte de nós mesmos. E o que nos resta, no fim, é imitarmos a quietude de um campo aberto, onde as flores e as folhas germinam, pois estão enraizadas de tal forma que nenhum vento forte possa quebrá-las.

ARTIGO918

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