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PAPER 150: Projeto de País (EU SOU BRASIL!!!)

Tema: “Reformas.”

 

“Todo governo, em qualquer tempo e lugar, funciona exatamente como um bebê: um simples tubo alimentar. Com muito apetite numa ponta e nenhuma responsabilidade na outra.”

Ronald Reagan (Discurso de despedida da Casa Branca)

 

Reformas são do que mais se tem falado nos últimos 60 anos no Brasil, sem a formulação clara e inteligível do propósito, para todos, seja quanto ao conteúdo conceitual doutrinário ou seja quanto à concepção estratégica viável para aprovação – se pelas instituições vigentes ou se por instituições especificamente concebidas para tal finalidade, com a dissolução respectiva após a realização do objetivo.

Após décadas de estudos e debates nossas conclusões são de que as Reformas devem ser formuladas tendo por premissa a citação acima de Ronald Reagan, no Discurso de despedida da Casa Branca.

Temos afirmado, com certa frequência,  em nossas comunicações à população através dos PAPERs, que tem faltado filosofia e cumprimento rigoroso das concepções doutrinárias e das formulações, em tudo que tem sido feito – por  governantes e/ou governados. Isto foi explicitado no artigo de 2008 “Crise é oportunidade”, a propósito da crise financeira internacional nascida nos EUA disponível no “site” www.conselhobrasilnacao.org.

O Brasil, mergulhado historicamente na condição econômico-financeira de desequilíbrio orçamentário, por omissão e/ou falta de coragem para decidir,  impõe aos cidadãos crise permanente,   impedindo-lhes  progresso  material para o cultivo de padrão cultural e condição de espiritualidade (ver PAPER 22 de 22/07/2018 sobre o tema “Custo das crises e seu significado”).

A seguir quatro textos de pensadores cujos conteúdos expressam e fundamentam nossas formulações.

1) “A solução de um poeta para o mundo em crise.”

2) “Democracia nos EUA e aqui, segundo Tocqueville.”

3) “O Estado Federal” livro de Dalmo Dallari

4) Pregação de André Franco Montoro

O jornalista Martim Vasques da Cunha em artigo “Especial para o Estadão”, 28/04/2023 p.C6, sob o título “A solução de um poeta para o mundo em crise” – é sabido que os poetas são os mais importantes filósofos – nos possibilita recepcionar importante contribuição.

Seu texto, nos dá a oportunidade de conhecer Wendell Berry, nascido no Kentucky (EUA), fazendeiro e poeta. Ele foi um  ativista pela paz, influenciado pelas ideias de Henry Thoreau, o qual também muito inspirou Gandhi e  Martin Luther King Jr., pelo ensaio intitulado “Desobediência Civil”, de 1849: (…) “A ação baseada em princípios, a percepção e a prática do que é correto modificam as coisas e as relações; é essencialmente revolucionária e não se ajusta bem ao que havia antes. Não divide apenas estados e igrejas, divide famílias; e também o indivíduo, nele separando o diabólico do divino.”

A seguir a íntegra do texto “A solução de um poeta para o mundo em crise”:

“Há solução para a sociedade dilacerada em que vivemos atualmente? Neste mundo atormentado por disputas políticas infinitas, que crescem sem parar, além da evidente incapacidade das nossas elites de resolver o problema da nossa mera subsistência material, tudo o que parece nos restar é o mergulho no desespero, a desistência de qualquer tipo de esperança.

Contudo, não é bem assim que o poeta americano Wendell Berry, de 88 anos, vê as coisas. Por intermédio da sua obra peculiar – poesia, romances, ensaios –, ele não só nos dá uma oportunidade para uma fuga sadia de todo esse emaranhado em que nos metemos, como também nos abre para aquilo que só a grande arte permite: a quietude do espírito.

Berry teve dois livros recentemente publicados e que mostram que ele ainda está em pleno vigor. O primeiro é Jayber Crow – que chega agora às livrarias brasileiras –, um romance comovente sobre um barbeiro, testemunha privilegiada do que acontece entre os membros da vila de Port William, lugar ficcional onde o escritor conta a história americana dos últimos 150 anos, da Guerra Civil até os nossos tempos conturbados.

O segundo é The Need To Be Whole – Patriotism and the History of Prejudice, relato escrito no final de 2022 e que mistura autobiografia e pesquisa histórica sobre como o racismo – um pecado mortal que o próprio Berry chama de “a ferida oculta” dos EUA – infectou todas as relações sociais. Em ambos os casos, o que temos são mais do que meras reflexões: são, na verdade, meditações de um homem extremamente vivido, que sabe exatamente sobre o que está escrevendo.

É claro que ajuda muito o fato de que Berry é, antes de tudo, um poeta. Isso parece ser um mero detalhe, porém é uma vantagem e tanto. É graças a esse ofício que ele pode lidar com algo que a própria poesia (em especial, a contemporânea) deixou de lado – a capacidade da literatura de compreender a existência de diversos mundos dos quais fazemos parte.

Da mesma forma que outro poeta irmão, o inglês W. H. Auden, Wendell Berry reconhece, ao ser um artesão do verso, que vivemos em três categorias de pluralidades: multidões, sociedades e comunidades. Em The Dyer’s Hand, Auden explica a diferença entre elas. As primeiras são aparentemente reais, mas sua existência é pura ilusão; nelas, o indivíduo é menos que um, é somente uma estatística, uma abstração. Já as sociedades são um sistema que apenas ama a si mesmo; ali, uma pessoa existe exclusivamente em relação a outra; retire essa conexão entre elas e qualquer vínculo social verdadeiro acaba imediatamente. Com a terceira categoria – as comunidades –, temos a união por meio de algo que transcende os seus membros, um amor que os une além da mera funcionalidade. Nela, o indivíduo é insubstituível e único – e, portanto, os integrantes ali são livres e iguais, pois, para existir tanto uma multidão como uma sociedade, a comunidade abriga diversas comunidades que, por mais diferentes que sejam, conseguem encontrar um fundo comum de comunicação e, sobretudo, respeito.

Wendell Berry abraça por completo a defesa da comunidade como fundamento de tudo que estrutura – e salva – a nossa sociedade moderna gigantesca, inchada e corrupta. Para ele, trata-se de um organismo vivo e misterioso, cujos moradores sabem muito bem o que acontece com os seus vizinhos, não por uma questão de vigilância ou maledicência, mas sim porque cada um ali tem uma responsabilidade com o seu próximo. Ao contrário do Estado Moderno, que se movimenta por interesses escusos e desejos de poder disfarçados de busca pelo Bem Comum, a comunidade vislumbrada por Berry é amada porque a democracia praticada naquele lugar é a democracia dos afetos, a mesma democracia que respeita os vivos porque sabe muito bem que eles serão os mortos do futuro.

É assim que em Jayber Crow observa a vila de Port William, a moldura ficcional criada por Berry para restaurar o que aconteceu de errado na América contemporânea. Em um romance impecável, com o ritmo plácido de um rio que reconhece perfeitamente qual é o seu curso, o poeta veste a máscara do prosador para contar a história desse sujeito que, desencantado com a vocação de ser pastor, resolve trilhar um caminho solitário e, para sobreviver, aceita o trabalho de ser o barbeiro da região. O que era para ser apenas uma função, a ser executada mecanicamente, se transforma em uma posição importantíssima, pois ele é capaz de observar a vida e a morte de todos os personagens essenciais para a existência daquela comunidade. No fim, ser o barbeiro de Port William era a sua verdadeira vocação, mesmo que isso implicasse uma vida confeccionada no silêncio e no segredo, em especial quando Berry descreve o drama interior de Crow ao se apaixonar – sem nunca declarar o seu amor – pela bela (e casada) Mattie Chatham.

Essa paixão de décadas se desdobra (e também se reflete) na contemplação amorosa de um mundo que se dissolve aos poucos. Nesse sentido, Crow é também o alter ego de Berry, que em seus poemas e, principalmente, em seus ensaios, denuncia o maior crime de todos a ser executado contra a única coisa que salva ou destrói uma comunidade: o afeto pela preservação do próprio solo. Sem o cultivo adequado da nossa terra – enfim, da nossa propriedade – nem sequer somos capazes de agir numa política pragmática minimamente decente. Para Berry, o cuidado com o solo, o lar e a terra é o que importa para a reunificação entre seres humanos extremamente pecadores e falíveis. Não à toa, em seu ensaio clássico, The Unsettling of America (1977) – que influenciou as obras de Christopher Lasch, Philip Rieff e Patrick Deneen –, ele faz uma denúncia brutal contra a máquina implacável do Estado e das grandes corporações que simplesmente destruíram, com seus especialistas e tecnologias impessoais, as comunidades, as sociedades e as multidões de todo um país (e é interessante observar que esse diagnóstico segue uma tradição similar ao que foi feito pela francesa Simone Weil na época da 2.ª Guerra com sua obra-prima O Enraizamento).

Contudo, não pensem que Wendell Berry é um “ludita”, um sujeito deslocado no tempo que não aceita o progresso histórico. Pelo contrário: ele o abraça como poucos. A única diferença é que Berry reconhece que progresso significa uma adição à nossa engenhosidade humana de praticar o bem comum, enquanto o que é vendido por nossas elites é, na verdade, uma subtração da nossa dignidade e da nossa capacidade de conquistar o mal que surge em nossos corações. É nessa dialética que o poeta medita sobre a questão espinhosa do preconceito racial em seu país, em particular no livro The Need To Be Whole, no qual ele argumenta que a “ferida oculta” dos EUA é mais uma consequência dos maus-tratos que o Estado fez com o solo que protegia seus cidadãos.

Sem um lar, sem uma terra para cuidar das suas posses materiais e espirituais, tanto os brancos como os negros ficaram impedidos de encontrar uma base moral de comunicação entre eles. A América se transformou em um campo de batalha verbal onde a linguagem é mais uma tática de ataque do que uma estratégia de convivência sadia. O maior exemplo disso é a incompreensão dos grupos de políticas identitárias, em especial o Black Lives Matter ou as facções supremacistas, que querem reescrever a história complexa e complicada da Guerra Civil, causando assim mais ódio e ressentimento entre as diversas classes sociais. Isso impossibilita também que a sociedade americana consiga permanecer dentro do verdadeiro pluralismo que somente existe quando ela se vê como uma comunidade.

A tese de Berry é polêmica, sem dúvida. Mas o que é mais polêmico vem a seguir: a cura para esse dilaceramento moral entre os cidadãos de uma única república – sejam os EUA, seja o Brasil – não virá da ajuda técnica das nossas instituições democráticas. Para o poeta, será o perdão – sim, ele mesmo, o tal do perdão que absolve nossos erros – a única ferramenta prática capaz de reunir não só os dissidentes dos nossos respectivos países, mas também a nossa psique fraturada.

O preconceito racial surge da nossa dificuldade de aceitarmos o perdão como um instrumento realmente válido. Acreditamos que ele é apenas algo “abstrato” – enquanto o ódio seria algo “concreto”. Ocorre que, para Wendell Berry, sem o perdão nada funciona – desde as comunidades em que vivemos até a arte que produzimos. E é nesse aspecto que ser um barbeiro (como Jayber Crow), um soldado, um agricultor e, enfim, um artista, ajuda mais do que atrapalha, pois são posições que lidam com o indivíduo o tempo todo e que fazem cada um conhecer o seu próximo em sua peculiaridade irredutível. O escritor sabe que sua obra de arte é a tentativa de equilibrar a liberdade e a lei que regulam os cidadãos – e que um bom poema é análogo a uma harmonia provisória que, por meio do perdão proferido pela limpidez do verbo, nos reconcilia diante da misericórdia do mundo.

É essa misericórdia que Wendell Berry recupera naquilo que ele articulou nos versos célebres de um dos seus poemas mais singelos (e mais conhecidos), intitulado O Medo do Amor. Tememos porque amamos o que iremos perder – seja como parte de uma multidão, de uma sociedade ou de uma comunidade, seja como parte de nós mesmos. E o que nos resta, no fim, é imitarmos a quietude de um campo aberto, onde as flores e as folhas germinam, pois estão enraizadas de tal forma que nenhum vento forte possa quebrá-las.”

Já tínhamos até então a contribuição de André Caramuru Aubert, por seu texto “Especial para o Estadão” de 17/03/2023 p.C6 sob o título “Democracia nos EUA e aqui, segundo Tocqueville” a seguir transcrito na íntegra:

“Sai nos EUA uma nova biografia do francês Alexis de Tocqueville, que foi até a América estudar os pilares da política e da liberdade daquele país

Em 1831, um jovem aristocrata e juiz francês, Alexis Charles Henri Clérel, sentindo que sua carreira estava empacada, obteve permissão para viajar aos Estados Unidos. O pretexto era estudar o sistema prisional daquele país. A viagem até contribuiu para uma reforma das prisões francesas, mas seu principal efeito foi gerar um dos grandes clássicos da ciência política ocidental, o livro A Democracia na América. Hoje, uma nova biografia sobre o autor – mais conhecido pelo nome heráldico de Alexis de Tocqueville –, The Man Who Understood Democracy (O Homem Que Compreendeu a Democracia), por Olivier Zunz, acaba de sair nos Estados Unidos. Enquanto lia o livro, me perguntei como teria sido se, em vez de Estados Unidos, Toqueville tivesse (como seus conterrâneos Debret e Taunay), vindo ao Brasil. Com certeza, se /escrevesse um livro sobre a experiência, o título não seria “A Democracia no Brasil”. Hoje, claro, as coisas mudaram. A questão é saber quanto.

No dia 8 de janeiro, o mundo assistiu a uma inacreditável baderna golpista em Brasília, que invadiu os palácios-sede dos três Poderes e provocou destruição em série. A comparação com a invasão do Capitólio norte-americano, ocorrida dois anos antes, foi inevitável, a ponto de alguns terem batizado o evento brasileiro de “capimtólio”. O que há em comum entre os dois casos, entre eles e nós?

Na verdade, traçar paralelos entre Estados Unidos e Brasil é uma obsessão antiga (nossa, não deles). Um pouco, talvez, por aquilo que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-latas”, os brasileiros não largam a mania de tentar explicar os motivos de o gigante do norte “ter dado certo”, e o gigante do sul jamais ter deixado de ser uma promessa de “país do futuro”. Em 1954, por exemplo, Clodomir Vianna Moog publicou o livro Bandeirantes e Pioneiros: Paralelo Entre Duas Culturas, hoje esquecido, mas best-seller por décadas, no qual o autor tentava explicar o sucesso de um país e o fracasso do outro. O livro significou um grande avanço diante de explicações anteriores, pois desprezava as teorias racistas até então bastante aceitas.

Para Vianna Moog (que leu Tocqueville), a principal explicação, além das vantagens climáticas, hidrográficas e geográficas norte-americanas, e da superioridade da ética protestante sobre a católica (via Max Weber), estava nos modelos colonizadores: para as 13 colônias americanas emigraram pessoas querendo construir, com suas famílias, novas vidas, com liberdade religiosa e política, plantando raízes no novo país (pioneiros). Para o Brasil, vinham indivíduos, sem suas famílias, em busca de prear, enriquecer e, assim que possível, regressar à Europa (bandeirantes). É evidente que as explicações de Vianna Moog, além de algumas de suas premissas (como a de que no Brasil o racismo é inexistente), não resistiram ao tempo; mas o complexo de vira-latas, com a inevitável comparação com os Estados Unidos, continua firme, algo que o nosso “capimtólio” só fez alimentar.

Alexis de Tocqueville não apenas escreveu uma obra essencial, como foi, também, um sujeito interessante. Ele não era um aristocrata qualquer. Sua linhagem, tanto pelo lado do pai quanto da mãe, remontava às mais antigas famílias nobres da França. Antepassados estiveram na invasão da Inglaterra com Guilherme, O Conquistador, em 1066, e na derrota francesa na batalha de Crécy, em 1346. Em anos mais recentes, um bisavô de Tocqueville, o marquês de Malesherbes, ex-poderoso ministro de Luís XV, foi o único que teve coragem de atuar como advogado do rei Luís XVI, deposto na Revolução Francesa. Como se sabe, ele perdeu a causa e o rei perdeu a cabeça. Menos sabido é que o próprio advogado seria, ele mesmo, guilhotinado poucas semanas depois, assim como a esposa, os filhos e quase toda a família. O pai e a mãe de Alexis escapariam por pouco, pelo simples fato de Robespierre, o açougueiro-mor da Revolução, ter sido deposto – e decapitado – alguns dias antes da data marcada para os Tocqueville.

Com tudo isso, seria esperado que Tocqueville se tornasse um ressentido conservador linha dura – mas não foi o que aconteceu. Ainda que mantivesse boas relações com seus parentes conservadores, ele se tornou um democrata que detestava ser chamado pelo título de conde e, quando deputado, até mesmo tentou criar uma espécie de Bolsa Família na França (ainda que seja verdade, por outro lado, que Tocqueville jamais defendeu o fim da monarquia, e tampouco abriu mão das propriedades que herdou ou dos privilégios que sua posição lhe dava).

Em que as análises de Tocqueville poderiam nos ajudar a analisar os eventos golpistas de Washington e de Brasília? É claro que, por mais inteligente e agudo que fosse, Tocqueville conheceu os Estados Unidos há quase 200 anos, no começo da década de 1830. A independência fora consolidada havia pouco, na guerra de 1812 contra a Inglaterra. O país, ainda concentrado nas ex-colônias atlânticas, era uma fração territorial do que viria a ser. A escravidão resistia, especialmente nos Estados do Sul; a Guerra da Secessão, que a encerraria, ainda levaria algumas décadas para acontecer (Tocqueville, que era visceralmente contra a escravidão, apontou que ali estava um grande risco de fissura para a unidade norte-americana).

De um jeito ou de outro, ele percebeu que a democracia americana era baseada nas comunidades, que não era algo decretado de cima para baixo, e que nisso residia a sua força. Era a partir dos municípios que se incentivava o empreendedorismo e se investia na educação básica. E, ainda que o país fosse jovem, os ricos se sentiam impelidos a patrocinar universidades (como Harvard, de 1636).

Não que Tocqueville não tivesse questões. A principal talvez fosse o receio de que a democracia acabasse criando uma ditadura da maioria, o que tornava fundamental a existência de contrapesos como a Suprema Corte e a imprensa livre.

Se, na mesma época, em vez da República norte-americana, Tocqueville tivesse visitado o Brasil, ele teria encontrado uma monarquia vivendo entre um imperador forçado a abdicar e outro, menino, aguardando a maioridade. Potencialmente rico, mas com a maior parte de sua população escravizada ou pobre, nada tinha de democrático e era pouco preocupado com educação: o Brasil ainda engatinhava com suas jovens faculdades de Direito (São Paulo e Recife) e Medicina (Rio e Salvador) e nossas primeiras universidades só viriam daí a um século no futuro. E a educação fundamental era quase inexistente. Ou seja, os americanos já formavam cidadãos, ao passo que nós, muito precariamente, formávamos, como médicos e advogados, os filhos das elites do café e do açúcar.

O debate sobre a escravidão, que lá opunha Norte e Sul, por aqui era praticamente ignorado, tanto que ainda levaríamos mais de meio século até que se fizesse a abolição. Na realidade, nas mais de 550 páginas de A Democracia na América, não há uma única menção ao Brasil. Embora eu possa ter deixado escapar algo, encontrei uma única referência, por Tocqueville, ao nosso país: em 1843, já deputado, ele pediu – sem sucesso – que a França aderisse ao esforço britânico no combate ao tráfico de escravos para Brasil e Cuba.

E as Forças Armadas? Nos Estados Unidos, Tocqueville encontrou um exército formado por cidadãos que lutara pela independência do país. Nas décadas seguintes, as Forças Armadas de lá foram paulatinamente profissionalizadas e utilizadas tanto para salvar a União quanto em guerras – não necessariamente justas – que garantiram a expansão do território (indígenas e mexicanos foram as maiores vítimas). No Brasil, o Exército era entidade sem relevância até a Guerra do Paraguai (1864-70). Mas depois que derrubou a monarquia, em 1889, jamais deixou de se intrometer na política.

Quando Trump tentou arregimentar o Exército para uma tentativa de golpe, foi sumariamente ignorado, ao passo que, no Brasil, os apelos de Bolsonaro por uma aventura encontraram, ao que parece, uma caserna dividida entre aventureiros e legalistas.

Nos Estados Unidos do começo do século 19, os municípios eram a base da vida política. Tocqueville chamou a atenção para o fato de cidades como Salém e Concord existirem muito antes de surgir um Estado de Massachusetts. Na origem, o poder estadunidense era organicamente descentralizado, favorecendo a democracia, com decisões tomadas em reuniões comunitárias. No Brasil, desde o descobrimento, as ordens partiam de Lisboa primeiro – e, depois de 1808, do Rio de Janeiro. O Brasil era um país novo assentado em valores coloniais arcaicos, que se recusava a evoluir; nos Estados Unidos, o Norte, dinâmico, pressionava o Sul, retrógrado, a mudar, mas o custo para isso ocorrer seria uma guerra de grandes proporções.

Nenhuma democracia está segura, como atestam as invasões de Washington e Brasília. Ainda assim, quando Tocqueville visitou os Estados Unidos ficou impressionado com a democracia que encontrou. A França daqueles anos, que já passara pelos banhos de sangue da Revolução e de Napoleão, tinha de novo um rei e estava longe de ser democrática.

Tocqueville vislumbrou, na força das comunidades e na participação dos cidadãos na vida pública, o regime político que deveria servir de modelo para o mundo. É verdade que os americanos jamais tiveram uma democracia perfeita (se é que isso existe), têm sérios problemas raciais e de desigualdade e tropeçaram feio com Trump. Mas por aqui, sempre à espera do retorno de algum d. Sebastião para nos salvar, somos inegavelmente mais vulneráveis a aventuras autoritárias.”

Acrescenta-se ainda a contribuição do Dr. Dalmo de Abreu Dallari, já falecido, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, por seu livro “O Estado Federal”, do qual transcrevemos parcialmente:

(…) “Os Estados Unidos da América vivem, há duzentos anos, com a mesma Constituição. O que foi que tornou isso possível? Sem dúvida alguma, isto se deve, em grande parte, ao federalismo, que tem permitido conciliar os interesses particularizados, existentes em cada Estado-membro, com os interesses comuns de todo o povo norte-americano. Assim, também os Estados Unidos nunca sofreram a humilhação e a tragédia de uma ditadura, e uma vez mais aparece a organização federativa com uma das causas mais relevantes.

Quais são, afinal, as características do Estado federal norte-americano? Por que o federalismo não produziu o mesmo resultado em outras partes do mundo? Que contribuição pode dar a organização federativa para a democracia? São questões que este livro ajuda a enfrentar.” (…)

(…) “A organização federativa do Estado é incompatível com a ditadura. Isso tem ficado muito evidente através da História, não havendo exemplo de convivência de ambas. Onde havia federalismo e se instalou uma ditadura ocorreu a concentração do poder político. E mesmo que mantida formalmente a federação, a realidade passou a ser um Estado Unitário, com governo centralizado. São exemplos disso a Alemanha com a ascensão de Hitler, o Brasil com a ditadura Vargas e a Argentina de Perón. Federalismo e ditadura são incompatíveis” p.66 (…)

Informações obtidas através do ChatGPT:

“Federalismo é um sistema político em que o poder é dividido entre um governo central e governos regionais ou estaduais. Nesse sistema, cada estado ou região tem sua própria constituição, governo e leis, mas também está sujeito à autoridade do governo central em questões que afetam todo o país, como defesa nacional, política externa e comércio internacional. O federalismo é uma forma de descentralização do poder, que permite que as regiões ou estados tenham mais autonomia e poder de decisão em questões locais, enquanto ainda estão integrados em um sistema nacional. O federalismo é adotado em vários países, incluindo os Estados Unidos, Brasil, Alemanha, Austrália, Canadá, entre outros.”

Registra-se também a pregação de André Franco Montoro,  professor de Direito Constitucional da PUC/SP e ex-governador de São Paulo, pela descentralização do Estado brasileiro, quando cunhou a expressão “O cidadão vive no município, não no Estado Federado ou na União”, que são estruturas artificiais insensíveis às carências e afetos humanos.

Em 28/01/2023 o Conselho Brasil-Nação e o Movimento GRITA! promoveram o “II Seminário: Plano Econômico Estratégico para o Brasil”, cuja síntese é o “Equilíbrio Orçamentário” das finanças públicas, para que as Despesas do Estado sejam menores ou iguais às Receitas Tributárias, e que o endividamento do Estado seja para investimento público em empreendimentos de retorno assegurado, o que requer:

1) a Redução do Custo do Estado pela adoção do Federalismo descentralizado, visando fortalecer a Democracia representativa por trazer as decisões públicas mais para perto do cidadão comum,

2) e, concomitantemente, promover a  Elevação do Patamar do PIB brasileiro, pela implementação de vigoroso programa de “industriar e exportar”, dando ao sistema produtivo o “status” de fornecedor para o exterior, onde está potente (poder aquisitivo) mercado comprador.

Mais subsídios, que complementam os objetivos do Desenvolvimento Econômico (que precede o Desenvolvimento Social) e da Democracia, podem ser encontrados no Blog www.vespeiro.com criado e gerenciado pelo jornalista Fernão Lara Mesquita.

As experiências e conceitos que foram expostos acima pelos articulistas embasam o que Conselho Brasil-Nação vem, desde 1990, estudando, debatendo e propondo, qual seja: o Federalismo descentralizado e doutrinariamente adequado, como a solução de estrutura de Estado para o Brasil. Porém, foi perdida a oportunidade de adotá-la constitucionalmente dada pelas disposições transitórias da Constituição atual, promulgada em 1988. Naquela oportunidade da Revisão Constitucional que deveria adequar a Constituição de 88 ao novo mundo – que já surgia e veio a se concretizar – com a queda do Muro de Berlim, foi elaborado e proposto ao Congresso Nacional, para a instituição do Federalismo descentralizado, o “Anteprojeto de Constituição Brasil-Nação”. De fato, infelizmente não houve  acolhimento dessa proposição  pela elite política e pela elite econômica.

Atualmente o Congresso Nacional e todo o sistema empresarial empenham-se no equívoco de aprovar uma Reforma Tributária sem ter antes reformado a estrutura administrativa à qual ela se aplica.

Reforma Tributária essa com fundamentos e concepções bem distintos das equivocadas cogitações dos atuais políticos, empreendedores e demais “achistas” (ver Estadão de 03/05/2023 p.B8, “Deputados vão à OCDE conhecer o IVA no mundo” ) – possivelmente, Turismo !

Tais cogitações, impróprias para uma Federação, fundamentadas na frieza dos procedimentos digitais, tramitam no Congresso Nacional desde 2019. A OCDE não tem o que ensinar; o que é preciso é  conhecer  o experimento da Alemanha e dos EUA, que guardam similaridade e equivalência com o Brasil. Querem “inventar a roda”, buscar um “milagre” que não vai atender às necessidades do País (aumentando a centralização da arrecadação dos atuais 54% para 100% como preveem as propostas em tramitação, pela eliminação dos impostos estaduais e municipais, o que agrava ainda mais o Federalismo brasileiro, pondo em risco a democracia); pois defende uma estrutura tributária destinada tão somente ao crescimento arrecadatório a qualquer custo, – sem olhar para o futuro (…) “… um soldado, um agricultor e, enfim, um artista, ajuda mais do que atrapalha, pois são posições que lidam com o indivíduo o tempo todo e que fazem cada um conhecer o seu próximo em sua peculiaridade irredutível. (…)    (…) “… é capaz de observar a vida e a morte de todos os personagens essenciais para a existência daquela comunidade.” (…)    (…) “… o maior crime de todos a ser executado contra a única coisa que salva ou destrói uma comunidade: o afeto pela preservação do próprio solo. Sem o cultivo adequado da nossa terra – enfim, da nossa propriedade – nem se quer somos capazes de agir numa política pragmática minimamente descente.” (…)    (…) “… o cuidado com o solo, o lar e a terra é o que importa para  reunificação entre seres humanos extremamente pecadores e falíveis.” (…)   (isto é pacificação – tão apregoado e nada praticado.)    (…) “… Berry faz uma denúncia brutal contra a máquina implacável do Estado e das grandes corporações que simplesmente destruíram, com seus especialistas e tecnologias impessoais, as comunidades, as sociedades e as multidões de todo um país.” (…)   Não é que Berry (…) “… não aceita o progresso histórico. Pelo contrário: ele o abraça como poucos. A única diferença é que Berry reconhece que progresso significa uma adição à nossa engenhosidade humana de praticar o bem comum, enquanto o que é vendido por nossas elites é, na verdade, uma subtração da nossa dignidade e da nossa capacidade de conquistar o mal que surge em nossos corações.” (…) Para (…) “… a sociedade permanecer dentro do verdadeiro pluralismo que somente existe quando ela se vê como uma comunidade.”  (…)    (…) “Mas o que é mais polêmico vem a seguir: a cura para esse dilaceramento moral entre os cidadãos de uma única república – sejam os EUA, seja o Brasil – não virá da ajuda técnica das nossas instituições democráticas. Para o poeta, será o perdão – sim, ele mesmo, o tal do perdão que absolve nossos erros – a única ferramenta prática capaz de reunir não só os dissidentes dos nossos respectivos países, mas também a nossa psique fraturada.” (…)

O atual ímpeto de Reforma Tributária a fim de resolver uma situação de “caixa” imediato pondo toda a população submetida a riscos de toda ordem sem avaliar, porque não enxergam – seja por ignorar ou por interesses próprios –, as consequências para a democracia e para o Desenvolvimento Econômico, e a satisfazer às conveniências da atual estrutura administrativa, comprovadamente  inadequada e irracional,  que tornou o Brasil ingovernável.

O Brasil está em estado de crise permanente, especialmente desde 1930; e em particular desde a promulgação da Constituição de 1988, e em recessão econômica desde maio/2014. A síntese da insatisfação e ansiedade, que suportam tais propostas, é tratar-se de uma “filosofia” econômica consumista, num país sem consumidor porque não tem poder aquisitivo. É não entender que o consumidor só pode ser gerado pelo Desenvolvimento Econômico, ou seja, pela redução até a eliminação da POBREZA.

 

CONCLUSÃO

 

As experiências e conceituações expostas acima nos possibilitam formular propostas para as decisões primeiras em favor do início da realização do Desenvolvimento Econômico brasileiro:

1) a Reforma Política, que em essência deve ser  a elaboração e implementação  de novo e moderno Ordenamento Político-Partidário plural, enraizado na população, na comunidade,  para a prática democrática e no Estado de Direito – com primazia para os Municípios, onde vivem os cidadãos que diretamente se sensibilizam pela cidadania.

2) a Reforma Administrativa do Estado brasileiro para tornar o País governável, com a implementação do Federalismo descentralizado, voltado para a administração por comunidades mediante novo Pacto Federativo – a comunidade local (municípios), a regional (Estado Federados) e a nacional (governo da União de entes federados) cada uma com suas respectivas competências constitucionais. Assim, abandonar a insistência de pretender administrar eficaz e eficientemente o País como se fosse um só município – Estado unitário. A Reforma Administrativa é essencial para possibilitar governos eficientes e governantes bem sucedidos com a melhoria da Representação e da Representatividade no Brasil, País de dimensões continentais, população considerável e diversificação de riquezas, de culturas e de clima;

3) a Reforma Tributária – recursos financeiros para suportar o Estado – voltada  para a atribuição de poderes (competência tributária própria) para cada ente federativo, ou seja, em cada comunidade, cumprir suas finalidades e responsabilidades, para também criar, controlar e gerenciar seus próprios tributos, com autonomia de gestão administrativa, responsabilidade fiscal e independência financeira.

As demais reformas virão com menos dificuldades, pois serão impostas pela nova realidade.

 

A democracia fundada no Estado de Direito e na cidadania não é uma estação de chegada, mas uma maneira de viajar, visando ao desenvolvimento econômico, político, cultural e social para tornar o Brasil a melhor nação do mundo para se viver bem.

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