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Revisão Constitucional

*Miguel Reale, O Estado de S. Paulo, 08/05/1993

 

Não se pode negar prudência à Assembleia Nacional Constituinte ao estabelecer a revisão da Carta Magna após cinco anos, contados a partir da sua promulgação. É que os últimos meses de seus trabalhos foram atropelados por acontecimentos imprevistos, como o da reivindicação de um mandato presidencial de cinco anos, que redundaram numa obra inacabada e contraditória. A exemplo de Portugal, vítima de igual insegurança, a previsão de uma reforma constitucional, depois de razoável prazo de experiência, representou um ato digno de louvores, como os fatos supervenientes bem o demonstraram.

Isto não obstante, juristas há, embora em significativa minoria, que se insurgem contra o reexame por inteiro da Carta, pretendendo restringi-lo apenas ao resultado do plebiscito que optou pelo presidencialismo republicano, em função do qual seriam revistas tão somente as normas sobre regime de poder. Nada legitima a tese da vinculação do artigo 2º ao artigo 3º do Ato das Disposições Transitórias, dada a evidente diversidade de seu conteúdo, por ser naquele previsto o plebiscito, e neste ordenada a revisão da Carta, sem alusão alguma ao dispositivo anterior. Estamos, por conseguinte, perante um curiosíssimo critério de hermenêutica jurídica, conjugando-se duas disposições apenas por serem sucessivas. É obvio que, se a intenção dos constituintes fosse essa, o disposto no artigo 3º do artigo 2º, ou, então, naquele, se teria enunciado expressamente: “A revisão constitucional, resultante do plebiscito, etc., etc.” Desse modo, a interpretação meramente gramatical de per si tão desprestigiada, não socorre a esses singulares hermeneutas, abstração feita dos relevantes motivos de ordem social, política e econômica que estão exigindo o amplo reestudo da Constituição vigente.

Como se não bastasse a apontada novidade jurídica, estamos também perante uma investida, capitaneada por precipitados candidatos à Presidencia da República, visando transferir a revisão constitucional para depois das eleições gerais de 1994, sob a alegação de que o momento pré-eleitoral não seria propício a um exame objetivo e desapaixonado da matéria. Na realidade o que se pretende é exclusivamente preservar, em benefício de nossos fogosos “líderes” e de seus apaniguados, o presidencialismo imperial, com toda a sua congérie de poderes e benesses, continuando o eleitorado, constrangido, a fazer opções de caráter puramente pessoal.

Na realidade, o período, que vai do início de outubro até fim de fevereiro ou março de 1994, é mais do que suficiente para uma reforma ampla e satisfatória, da qual serão excluídos os mandamentos sobre direitos fundamentais consagrados no artigo 60, significativamente denominado “norma pétrea”. Bastará, por conseguinte, que os nobres parlamentares se privem de suas longas férias de verão para que a Assembleia Congressual possa concluir a sua alta missão bem antes das eleições marcadas para outubro do próximo ano, com tempo até mesmo para atender a eventuais desincompatibilizações.

Graças à revisão programada, é nos licito esperar que a próxima decisão do eleitorado já venha a ser feita em função de verdadeiros “partidos nacionais”, cujos requisitos serão reformulados, evitando-se, desse modo, a palhaçada a que estamos submetidos nos horários gratuitos de rádio e televisão. Por outro lado, é possível que também já esteja vigente o chamado “sistema eleitoral misto”, garantindo-se, outrossim, mais justa representação proporcional dos eleitores na Câmara dos Deputados.

A bem ver, o que amedronta os caudilhos da Novíssima República são os novos textos constitucionais que poderão modificar desde logo e imperativamente o nosso quadro partidário e eleitoral o que seria bastante para se condenar veementemente a postergação maliciosamente pretendida, camuflada sob inconsistentes “motivos de prudência política”.

Ademais, como contestar que a sobrevivência mesma do sistema federativo, ou, por melhor dizer, do Estado Democrático de Direito, está exigindo imediatos reajustes tanto no plano administrativo como no tributário? Eis aí mais duas revisões essenciais, a fim de que haja imprescindível sintonia entre a competência da União, dos Estados e municípios e a respectiva capacidade econômico-financeira, pondo-se termo também aos tremendos vícios que infectam a Administração Pública, inclusive sob a capa de ambíguo conceito constitucional de isonomia.

Se a essas quatro reformas substanciais acrescentarmos mais duas, a relativa à ordem econômica e a correlata desestatização de vários serviços públicos com a extinção de incabíveis monopólios oficiais, teremos razões de sobre para reconhecermos que a revisão constitucional, prevista para outubro próximo, assinala um momento decisivo na História nacional. Se não o aproveitarmos com discernimento e coragem, será irremediável o declínio de nosso processo cultural, desde os valores materiais aos democráticos.

Hoje em dia, até os mentores da Assembleia Nacional Constituinte reconhecem que esta se realizou fora de hora, quando ainda dominavam preconceitos estatizantes, muitas vezes inspirados em mal digerida vulgata marxista, acreditando-se ainda na luta de classes como fator determinante da História. Foi esse falso paradigma político, ruído logo após com os muros de Berlim, que nos levou a ter uma Constituição, onde uma admirável proclamação de direitos individuais e sociais, reclamada pela sociedade civil, contrasta, paradoxalmente, com a redução do povo a simples massa de manobra de uma estrutura burocrática rotineira.

Por fim, sem que por isso seja menos relevante, caber-nos-á superar o nacionalismo xenófobo, o qual fechou o Brasil ao fluxo do capital estrangeiro, em virtude de nocivos monopólios estatais e de não menos nocivo conceito de empresa nacional, como se nosso país representasse o último refúgio do paraíso terrestre.

Para alcançarmos, porém, tão altos objetivos é necessário que os homens responsáveis pelo destino da sociedade civil, desde as empresas e os sindicatos até as escolas e as universidades, desse os que militam no mundo das letras e das ciências aos que se empenham em missões religiosas, formem uma irresistível corrente de opinião capaz de levar de roldão as barreiras do oportunismo e do fisiologismo político que tem maculado nossa triste História republicana.

*Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP

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