A advertência de Biden a Israel
Só haverá paz agora se o Hamas for contido, e, no futuro, se os palestinos tiverem um Estado. Mas, como advertiu Joe Biden, os extremistas do governo de Israel ameaçam os dois objetivos
Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, 15/12/2023
Já no dia 7 de outubro, ainda entre os tremores e escombros do terremoto precipitado pela barbárie do Hamas, havia três certezas para Israel. A primeira é que o país não estaria seguro a curto prazo se a capacidade de agressão e o governo do Hamas em Gaza não fossem obliterados. Para isso, era inevitável um uso da força sem precedentes e consequentes danos aos civis palestinos, usados como escudo pelo Hamas. A segunda é que o país não estará seguro a longo prazo se os palestinos não gozarem de um Estado para se autogovernar e prosperar. Isso dependerá de um governo palestino moderado capaz de reconstruir Gaza e negociar a desocupação da Cisjordânia, com o apoio e garantias da comunidade internacional, em especial dos EUA e países árabes.
Não são objetivos antagônicos. Ao contrário. O Hamas é uma milícia terrorista que oprime seu povo, quer a aniquilação de Israel e dos judeus e ameaça os países árabes sob os auspícios do Irã. Quanto maior o seu poder, menores as chances de paz entre palestinos e judeus, de estabilidade no Oriente Médio e de segurança no planeta.
Mas sabia-se que, se Israel cedesse à tentação da vingança, punisse coletivamente os palestinos e devastasse Gaza, isso erodiria rapidamente a legitimidade de sua operação militar e a simpatia da comunidade global, destruiria as chances de aproximação com os árabes e inflamaria o extremismo entre os palestinos, implodindo a possibilidade da criação de dois Estados e precipitando os dois povos em uma guerra perpétua, com contingentes crescentes entre eles clamando pela destruição um do outro. É esse o objetivo do Hamas e do Irã. Mas também dos extremistas em Israel.
Daí a terceira certeza: que o equilíbrio entre a tática militar de curto prazo e a estratégia política de longo prazo seria volátil.
Após a quebra de uma breve pausa e a retomada do combate no sul de Gaza, o mais intenso até agora, há indícios não só de que esse equilíbrio está desmoronando, como também, ainda mais preocupante, de que o governo israelense não está interessado em buscá-lo.
Como em toda guerra, a legitimidade desta depende da proporcionalidade, ou seja, o uso da força estritamente necessária para neutralizar a ameaça do agressor. A mera assimetria de mortes não é, por si só, evidência de desproporcionalidade – de sua parte, Israel alega que um terço dos mortos é militante do Hamas. Mas talvez mais do que os ataques, o que degrada a legitimidade de Israel é sua relutância em permitir suprimentos, auxílio humanitário e zonas seguras para refugiados.
Mais grave é que no terceiro mês da guerra o governo de Benjamin Netanyahu não apresentou qualquer visão de longo prazo para o conflito israelo-palestino. Os moderados que passaram a compor o governo não estão conseguindo refrear os extremistas de direita, que, ao contrário, têm aproveitado a situação para hostilizar palestinos na Cisjordânia e defender a reocupação de Gaza, alimentando o delírio bíblico da “Grande Israel”.
Os aliados de Israel estão vocalizando sua insatisfação. As críticas de Joe Biden, o presidente dos EUA, principal fornecedor de armas a Israel e o único país capaz de lhe oferecer escudo diplomático contra as pressões por um cessar-fogo na ONU, são um divisor de águas. No que soou como um ultimato, Biden advertiu que, se Netanyahu não mudasse de rota, perderia apoio global.
A verdade é que os governos dos palestinos e israelenses são um obstáculo a um processo de reconciliação. As pressões dos aliados de Israel por moderação deveriam ser complementadas por pressões por novas eleições o quanto antes. Em contrapartida, os árabes precisam se mobilizar para construir alternativas críveis ao governo terrorista de Gaza e ao governo corrupto da Cisjordânia.
Enquanto Netanyahu e o Hamas estiverem no poder, a criação do Estado palestino e sua coexistência com Israel será impossível. Mas pode-se dizer que, mesmo que Netanyahu caia e que o Hamas seja destruído, essa coexistência ainda será uma utopia – e no entanto é essa utopia o único caminho possível para uma paz duradoura.
ARTIGO1005