EUA e China cobiçam sul da América, rota em alta por guerra e crise do clima
Terra do Fogo é alternativa a trajetos comerciais tradicionais como o do Canal do Panamá, afetados pela mudança climática e por conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio
Por Americas Quartely Punta Arenas, Patrícia Garip, O Estado de S. Paulo, 28/04/2024
Sobre os pilares de um píer centenário, biguás observam navios de cruzeiro, navios-tanque de propano e navios de pesquisa que pontilham o Estreito de Magalhães. No horizonte, uma baleia jubarte borrifa uma pluma nebulosa para o céu. Este é um cartão-postal do fim do mundo, com carimbo de Punta Arenas.
Mas o lugar não é tão remoto quanto se imagina. Punta Arenas tornou-se um ponto de acesso improvável para o transporte marítimo global, um dos vários portos que ganham importância na América Latina. À medida que as guerras obstruem rotas vitais no Oriente Médio e na Europa, as alterações climáticas complicam o uso do Canal do Panamá e avanços tecnológicos, como o hidrogênio verde, ganham destaque, mesmo os portos nos lugares mais remotos da região estão recebendo atenção.
A mudança reflete-se no crescente volume de navios mercantes que atravessam o Estreito de Magalhães. Em janeiro e fevereiro, o tráfego aumentou 25% em relação ao mesmo período de 2023 e 83% em comparação com 2021, quando as cadeias de abastecimento ainda estavam perturbadas pela pandemia. A Marinha do Chile está se preparando para que o tráfego aumente em até 70% este ano. “Estamos em uma parte do mundo cada vez mais estratégica”, disse o prefeito de Punta Arenas, Claudio Radonich.
DISPUTA. As potências globais estão correndo para expandir sua presença. A China manifestou interesse em construir um complexo portuário perto da foz atlântica do estreito, do outro lado da fronteira do Chile, na Argentina. A partir daí, Pequim poderá aumentar sua presença na região e também projetar influência na Antártida, onde a rivalidade está esquentando à medida que o gelo marinho derrete.
Em abril de 2023, a chefe do Comando Sul militar dos EUA, Laura Richardson, visitou Argentina e Chile, parando em Punta Arenas para um briefing de segurança e um passeio pelo estreito.
Para aproveitar o máximo o momento, Punta Arenas e a região vizinha precisam de uma melhoria de infraestrutura. Atualmente, a região dispõe apenas de alguns molhes e rampas, capazes de receber navios de médio porte, alguns cruzeiros e barcaças – mas não grandes navios-tanque e porta-contêineres. Não existem gruas ou bacias protegidas.
“Se quisermos avançar em direção a um desenvolvimento mais justo e inclusivo, precisamos de mais e melhores portos”, declarou o presidente do Chile, Gabriel Boric, em outubro. Ele, que cresceu em Punta Arenas, assinou em novembro um programa de investimentos de cinco anos, no valor de US$ 400 milhões, para modernizar portos e outras infraestruturas em Magalhães.
Mas muitos se perguntam se isso será suficiente. Na verdade, o investimento está chegando tarde aos portos da América Latina. O alarme soou já em 2018, quando o banco de desenvolvimento regional CAF determinou que a região precisava de US$ 55 bilhões em investimentos até 2040.
ATRASO. Desde então, houve pouco progresso. O Porto de Montevidéu está passando por uma expansão de US$ 500 milhões, que dobrará o volume de carga internacional. A Guiana, rica em petróleo, está construindo um porto em Georgetown. Mas o maior projeto está no Peru, onde a estatal chinesa Cosco Shipping inaugurará em breve a primeira fase do Porto de Chancay, avaliado em US$ 3,5 bilhões, perto de Lima.
Muitos outros portos, como Guayaquil, no Equador, Santos, no Brasil, e San Antonio, no Chile, continuam a ser atormentados por ineficiências e restrições de capacidade – bem como pelo aumento do crime organizado, à medida que os cartéis brigam por rotas lucrativas de contrabando.
O desafio tem menos a ver com construção e mais com inovação. A maioria dos portos da região está atolada em estruturas fechadas e obsoletas, observou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, no ano passado. Entre as prioridades estão o reforço da governança, digitalização e adoção de inteligência artificial para antecipar acontecimentos e gerir o fluxo de mercadorias.
O aumento do tráfego no estreito, uma via navegável de 610 quilômetros que se assemelha ao símbolo matemático da raiz quadrada, reflete em grande parte problemas globais. A seca minou os níveis de água no Canal do Panamá, onde o tráfego mensal caiu pela metade em relação ao pico de dezembro de 2021.
No Mar Vermelho, os rebeldes houthis têm disparado mísseis contra navios desde o ano passado, reduzindo as travessias no Canal de Suez em 42% nos últimos dois meses. E, no Mar Negro, há pouco transporte marítimo devido à guerra da Rússia na Ucrânia. A turbulência forçou os navios a seguirem rotas alternativas mais longas.
TRANSIÇÃO VERDE. A âncora econômica para o Estreito de Magalhães poderia ser o hidrogênio verde. O versátil recurso livre de carbono, derivado da água utilizando energia renovável, pode ajudar a substituir os combustíveis fósseis.
O mercado global de hidrogênio de baixas emissões pode aumentar de US$ 1,4 bilhão hoje para US$ 112 bilhões em 2030. É um cenário ousado para um recurso que ainda não é comercialmente viável.
Mas as empresas não se intimidam. Com ventos fortes e uma população escassa, Magalhães é o local ideal para produzir hidrogênio verde. A região atraiu pelo menos 16 propostas de projetos à escala de 16 gigawatts, principalmente para exportação sob a forma de amoníaco e combustíveis sintéticos, ou e-combustíveis, que reciclam dióxido de carbono.
PROJETOS. Quase todos os aspirantes a produtores são empresas europeias que correm para cumprir os objetivos de reduzir as emissões e diversificar suas fonte de energia, afastando-se do gás russo.
A lista de projetos totaliza mais de 3,6 mil turbinas eólicas – 25 GW de capacidade instalada. Realisticamente, quatro ou cinco projetos poderão surgir até a virada da década, o suficiente para transformar a paisagem. “Para Magalhães, será como voltar no tempo, quando éramos um porto livre e o tráfego de navios era enorme”, disse María José Navajas, diretora regional da agência estatal de desenvolvimento Corfo.
De forma encorajadora, o Chile assinou acordos de cooperação com portos de classe mundial em Roterdã, Antuérpia-Bruges e Cingapura. E o financiamento multilateral para infraestrutura está ao alcance. “As guerras são vencidas com logística, não com armas”, disse o engenheiro químico Erwin Plett, um dos defensores do hidrogênio verde no Chile.
Planos logísticos estão avançando, afirma Alex Santander, chefe de planejamento estratégico e desenvolvimento sustentável do Ministério da Energia. “Você não verá nenhum fogo de artifício, mas estamos fazendo o que precisamos, devagar e sempre.”
O governo de Boric quer que os portos sejam de acesso aberto e compartilhados para minimizar o impacto numa região rica em fauna, como guanacos e condores. Mas também quer encorajar o desenvolvimento industrial gerador de emprego.
DÚVIDAS. Como se esse equilíbrio não fosse suficientemente difícil, não está claro se os agentes conseguirão chegar a um acordo para partilhar infraestruturas. Os grandes estão disputando vantagens antecipadas, subsídios e o Santo Graal dos acordos. Os executivos também temem que a cooperação possa semear falsas percepções de conluio.
No Chile, porém, o modelo compartilhado é incomum. Na sua indústria mineira, por exemplo, os portos são normalmente construídos por uma única empresa para seu uso exclusivo. E questões sobre quem operaria uma instalação compartilhada permanecem sem resposta. “O principal desafio por trás da infraestrutura compartilhada será o modelo de negócio”, disse Gabriel Aldoney, presidente da estatal Empresa Portuária Austral (EPA).
ARGENTINA. Do lado argentino do Estreito, os investidores também estão ponderando as oportunidades portuárias e de hidrogênio, à medida que o presidente libertário Javier Milei segue um rumo mais alinhado com o Ocidente.
A proposta da empresa chinesa Shaanxi de construir um porto em Rio Grande foi rejeitada pelas autoridades federais, disse o especialista em segurança internacional Juan Belikow. Por enquanto, uma empreiteira argentina está projetando um porto para o local. Mais ao sul, em Ushuaia, a Marinha argentina está expandindo uma base para sua logística na Antártida e para monitorar a pesca chinesa.
De volta a Punta Arenas, o governador de Magalhães, Jorge Flies, corre a mão por um mapa de parede desta região do tamanho da Nova Zelândia, mas com apenas 1% da população do Chile, de 19 milhões de habitantes. Nos recantos além do Estreito, Flies aponta para a Baía Ultima Esperanza para exportações voltadas para o Pacífico. Em Puerto Natales e Puerto Williams, a cidade mais meridional do hemisfério, as obras portuárias estimularão o turismo.
A missão transcende a lógica comercial que impulsiona os portos marítimos em outras partes da América Latina. Um cais sólido na porção chilena da Antártida está em andamento, assim como projetos para um porto naval de US$ 200 milhões perto de Mardones, disse Flies. “Para ter trânsito seguro e tudo o que é necessário para logística e supervisão, precisamos de forças armadas muito fortes.” Uma nova autoridade incorporando a Marinha e a EPA supervisionará o futuro sistema portuário.
Uma presença militar reforçada ajudaria a salvaguardar a liberdade de navegação e o acesso ocidental à Antártida, um teatro emergente de competição internacional sobre a potencial exploração de minerais, reservas de água doce e dinâmicas de defesa. Também está em jogo a segurança alimentar global, na forma de fertilizantes verdes à base de hidrogênio e a competição por um terminal de cereais proposto na Terra do Fogo.
A liderança naval do Chile passa impressão de estar compromissada. “Estrategicamente, parte do papel da Marinha é contribuir para o desenvolvimento do país”, disse o almirante Jorge Castillo. “Devemos contribuir garantindo que o desenvolvimento avance, e não ser um obstáculo, permitindo que a indústria marítima se expanda de acordo com as necessidades destas novas situações estratégicas.”
Flies resume as implicações deste momento transformador para Magalhães. “O nosso papel, o nosso peso relativo dentro do nosso país e a nossa importância geoestratégica global mudarão significativamente”.
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