‘Come quando dá, descansa quando consegue’
Por Priscila Mengue, O Estado de S. Paulo, 14/05/2024
Com quase duas semanas de crise humanitária, parte dos voluntários dá sinais de cansaço, estresse e esgotamento. Autoridades têm destacado a necessidade que esse contingente siga engajado diante das semanas (possivelmente meses) de trabalhos ainda por vir. O Estadão entrevistou diversos voluntários de Porto Alegre e Canoas.
São casos como o de Juliett Freitas, de 34 anos. Eram 7 horas de sábado, dia 4, quando ela começou a se mobilizar. Ajudou em uma escola, uma paróquia, um Centro de Tradição Gaúcha (CTG), no esvaziamento de ruas, no recolhimento de doações. No início da tarde, chegou ao abrigo que começava a se formar – e se tornaria um dos maiores do Estado – no câmpus da Universidade Luterana do Brasil. Só saiu de lá na noite de domingo, 28 horas depois.
“Fui beber água no domingo. Não comi nada. A minha primeira refeição mesmo, de feijão e arroz, foi na terça-feira (7), à noite. Domingo, não consegui jantar”, diz. “Não senti sono, nem cansaço, nem nada. Quando paro é que começa a doer aqui, ali, vi machucados nos meus pés.”
Hoje, ela abriga uma funcionária de seu salão de beleza (fechado) e o filho – e tornou a casa ponto de doação.
CUIDADO. A administradora Mariah Albuquerque, de 25 anos, também trabalhou horas e horas a fio no abrigo instalado no Colégio Estadual Júlio de Castilho, em Porto Alegre. “Aqui, se está tendo um grande cuidado de conversar com as pessoas, de olho no olho, saber se está todo o mundo bem, se dormiu, se descansou”, conta, relatando já ter visto casos de burnout e pressão alta. “Precisa dizer ‘Tu já ficou aqui 8 horas, 12 horas, vamos trocar de turno, deixar outra pessoa fazer essa função’.”
“Mas como recrutar pessoas no estado em que o seu Estado se encontra?”, é o que indaga a analista de recursos humanos Alice Pantaleoni Ribeiro, de 30 anos. Ela tem se voluntariado com o marido no acolhimento de pessoas e animais resgatados em Porto Alegre. Para Alice, parte dos voluntários precisará de apoio futuramente, pois passa por nível de exposição a situações que nunca vivenciou. “Como pessoa de RH, acredito que agora está todo o mundo na adrenalina. Mas, no futuro, quando tudo isso ‘terminar’, o psicológico vai ficar bem afetado.”
EXEMPLOS. Não faltam histórias também de superação. E o que era um hobby virou uma forma de ajudar para o treinador de cavalos Thiago Leke, de 25 anos, e outros tantos “jipeiros” de Porto Alegre. Em grupos, eles se juntaram para fazer resgates em áreas que a enchente ainda estava subindo, assim como têm feito o transporte de coleta e entrega de doações. “A gente vai ajudar até onde o carro consegue. Quem conseguiu não precisar trabalhar passa o dia todo envolvido. Come quando dá, descansa quando consegue. E é dessa forma que a gente está tocando.”
Morando perto do Rio Gravataí, o diretor de escola Felipi Vidal Fraga, de 27 anos, teve a casa inundada com o avanço das águas na Grande Porto Alegre. “Precisei sair de barco de casa. Depois, assumi a coordenação do abrigo na escola.”
Há pouco mais de uma semana, a supervisora bancária Carla Jensen, de 38 anos, recebeu a ligação de uma professora dos filhos para ajudar a organizar a escola caso fosse necessário receber desabrigados pelas enchentes em Canoas.
Carla diz conhecer cada um dos 468 acolhidos. Também enumera quantas pessoas acolhidas têm alguma necessidade específica, como gestantes, idosas, diabéticas, hipertensas, com filhos bebês, soropositivas, com deficiência, com esquizofrenia e em regime semiaberto. “Era a escola dos meus filhos, hoje é a nossa.”
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