‘A China é um país que está no foco dos nossos interesses’
Comandante do Exército não vê risco de viagem ao país asiático criar mal-estar com Estados Unidos
Por Monica Gugliano, Heitor Mazzoco, O Estado de S. Paulo, 08/06/2024
O comandante do Exército, general Tomás Paiva, defende a ampliação de parcerias estratégicas do Brasil com a China e com outros países do Brics, grupo que reúne Rússia, Índia, África do Sul e, mais recentemente, Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes, Etiópia e Egito. Em entrevista ao Estadão, ele afirmou que a viagem que fará ao território chinês no próximo mês focará em ciência e tecnologia.
Paiva disse que pretende visitar todos os países dos Brics e só não irá à Rússia por causa do conflito com a Ucrânia. Em um momento especialmente tenso entre China e EUA, o comandante do Exército acredita que a ida à China não terá potencial para criar algum mal-estar com aliados dos Estados Unidos. “Temos um intercâmbio comercial muito intenso com a China e não acredito que possamos nos levar por uma polarização ideológica. Sempre fomos pragmáticos.”
Paiva falou com o Estadão no 11.º Grupo de Artilharia Aérea, onde participou da comemoração do Dia da Artilharia na manhã de ontem. Ele ainda defendeu a reativação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, rechaçou a politização dos militares da ativa, abordou a relação com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e reconheceu as dificuldades orçamentárias das Forças Armadas. Veja os principais trechos da entrevista:
O senhor vai para a China agora. Quais parcerias acha que dá para fazer?
O contexto da viagem à China é um contexto que é planejado no começo do ano com o Estado-Maior do Exército, que tem a incumbência de tratar das relações internacionais que a gente tem. O Ministério das Relações Exteriores tinha um interesse de que a gente se aproximasse dos países do Brics. Com a China, a gente já tinha uma relação anterior muito boa. A gente espera aumentar a colaboração na cooperação acadêmica, que já existe e é muito boa. Também na parte de ciência e tecnologia, acho que tem coisas para a gente pode conversar, porque eles são um polo de pesquisa de ciência e tecnologia. E também na parte de indústria de defesa, porque eles estão avançados nessa área. Esses são os principais temas que são comuns e que interessam aos dois países. Mas, lembrando, eu já fui aos Estados Unidos, à Índia. Então, eu preciso ir à China e eu preciso ir à África do Sul. Eu estou evitando de ir à Rússia, porque a Rússia está em conflito. Vários integrantes do AltoComando, em diferentes épocas recentes, visitaram a China. É um país que está no foco dos nossos interesses.
Nesse clima de confronto entre China e EUA, quais interesses o Brasil tem e o que pode nos prejudicar?
Eu não acredito que vá nos prejudicar. Primeiro, porque a gente tem um intercâmbio comercial muito grande com a China. A relação comercial e a relação diplomática são intensas, significativas. Eu não acredito que possamos nos deixar levar por polarização ideológica, porque não existe isso em relações internacionais. Sempre fomos pragmáticos. O nosso interesse é nessas áreas que eu te falei, acadêmico, de doutrina, de ciência e tecnologia. Por exemplo, se eu quiser falar de equipamentos de energia sustentável, renovável, para operações militares, é só você ver o que está acontecendo com a indústria de veículos movidos a bateria, os elétricos. Essa questão nos interessa, porque há sustentabilidade. Você falar de questão de defesa cibernética, você falar de mísseis, eles são avançados, têm dois conceitos que são muito modernos hoje, que é antiacesso e negação de área (combinação de armas e sistemas de armas). É uma maneira de você exercer a tua tarefa de proteger a soberania com mais tecnologia e, às vezes, com um pouco menos de efetivo.
Outra coisa é a relação com o Israel. Como ficou esse contrato (que prevê a aquisição de 36 viaturas blindadas de combate da israelense Elbit Systems) que foi adiado? Porque o PT diz que isso alimenta a máquina de guerra…
Essa é uma questão processual. Esse processo começou, se eu não me engano, em 2016, 2017, com a intenção de adquirir material de artilharia moderno. E essa tratativa se envolveu dentro de um cenário de certame internacional. Obviamente que isto é suscetível a entendimentos de relações exteriores do governo federal. No momento, o processo está suspenso. Foi a orientação que a gente recebeu do Ministério da Defesa. Ele está aguardando pronunciamento do governo.
E a Comissão de Mortos e Desaparecidos?
Já está definido isso. Em algum momento vai ser reativada, tendo em vista o fato de que as pessoas perderam gente. Elas teriam o direito de saber o paradeiro. Enquanto a pessoa estiver desaparecida, acho que é humanitário ter a possibilidade de saber o que aconteceu. Eu só fico preocupado de, com o tempo, as expectativas serem frustradas.
Não vai haver militares que vão reclamar disso?
Mas é um direito das pessoas de saber o que aconteceu com seus parentes. Então, mesmo reclamando, é o correto.
Há investigações em que o Exército precisa ajudar…
O Exército sempre ajudou. Houve várias expedições, pesquisas. Grupo de Trabalho Araguaia, por exemplo. Reitero: enquanto tiver a possibilidade de a pessoa querer saber o que aconteceu, é humanitário. Isto está pacificado para nós.
Então, o presidente pode instalar a comissão? Ele dizia que não instalava por causa dos militares.
É decisão dele. Não vejo problema.
Como está a sua relação com o presidente Lula?
É muito boa. Ele é o comandante supremo. Ele se relaciona com as Forças por um ministro de Defesa excepcional. O ministro de Defesa (José Múcio) é pessoa espetacular. Ele tem experiência. A gente se relaciona muito bem.
Quando o Brasil vai ter uma general mulher?
Vai ser muito em breve, tá? Em 2026 elas estão entrando no quadro de acesso. Como a gente começou mais tarde, elas estão chegando um pouquinho mais tarde.
Vocês continuam com uma aprovação bem alta, só que algumas pesquisas mostram que quem agora é contra vocês é a direita…
Não, não é que a direita seja contra. E não podemos quantificar a direita e a esquerda, porque o Exército é de todos os brasileiros. Mesmo daqueles que são contra a gente.
E como está o orçamento das Forças Armadas?
Está ruim para o Brasil inteiro. Essa questão orçamentária é uma questão que, quando há restrição orçamentária grande, isso afeta projetos estratégicos. São projetos que necessitam de previsibilidade. Por isso você tem uma PEC que está tentando dar previsibilidade aos nossos projetos de defesa. Obviamente que isso tem de ser discutido no Congresso. Mas é uma preocupação, e toda vez que a gente conversa com o presidente, o presidente tem essa preocupação também. Você investir na indústria de defesa com possibilidade de exportar material de emprego militar, isso gera divisas para o País. Aumenta a capacidade de investimento em ciência e tecnologia, você produz.
Mas vai ter dinheiro este ano ou vai ser como foi em outros anos? Tem dinheiro para a conta de luz?
Temos tido bloqueios (orçamentários) em alguns corpos, mas, via de regra, o ministro atua muito e o presidente tem interesse em resolver esse problema. Não acredito que a gente vai chegar a esse nível de cortar expediente, cortar luz. A questão de alimentação e fardamento já é despesa obrigatória, não é mais discricionária. Já estivemos com o presidente, estamos nos aproximando da área econômica. A expectativa é de que seja resolvido.
Em compensação, por exemplo, na Justiça, em outros setores, não falta dinheiro…
Eu não acho que a gente vá resolver qualquer problema orçamentário brigando para tirar orçamento de outros locais que precisam também. Eu acho que esse problema tem que ser resolvido de maneira macro. Dentro do escopo de orçamento tem tudo, inclusive a questão salarial. A nossa expectativa é de que isso possa ser revisitado e ser corrigido quando houver um olhar do governo para toda a categoria de funcionários públicos. Eu acho que há espaço para isso.
O que achou da frase do ministro Bruno Dantas, do TCU, que disse que tinha que começar pelas aposentadorias dos militares?
Com todo respeito, eu discordo. Desde 2001, temos sido afetados com a perda de direitos. E o que, às vezes, é difícil de as pessoas entenderem é que a profissão militar tem peculiaridades que impedem a pessoa de auferir um salário médio que permita uma aposentadoria tranquila, formação de patrimônio. Geralmente, a pessoa fica com restrições pela carreira.
A Venezuela está se movimentando em Essequibo. Os argentinos querem uma base em Ushuaia com os Estados Unidos. O Brasil se incomoda com isso?
Obviamente, não temos problema de segurança e defesa com nenhum vizinho na América do Sul. Acho que o interesse maior é seguir os nossos princípios de política externa, que é ter um continente seguro, que respeita a determinação dos povos e o direito internacional e que se relaciona com todo mundo sem gerência de gente de fora. É a melhor solução.
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