Ampliar os horizontes
Por Nicolau da Rocha Cavalcanti, O Estado de S. Paulo, 19/06/2024
Durante décadas, a primeira página do Estadão teve apenas notícias internacionais. Esse fato manifesta uma concepção forte de jornalismo, própria de quem tem claro qual é sua missão enquanto jornal. Ao realizar a curadoria das notícias, ele atribui importância de acordo com seus princípios e sua visão de mundo. Não se coloca como refém da opinião majoritária do momento. Isso não significa alheamento, e sim independência, permitindo prover uma compreensão dos fatos menos condicionada pelo espírito do tempo, à frente do seu tempo. Basta pensar que a opção editorial de dar prioridade às notícias internacionais vigorou em uma época muito anterior à globalização e na qual a esfera internacional era incrivelmente mais distante do cotidiano da população. Viajar para o exterior era muito menos frequente e muito menos acessível do que nos dias de hoje.
Além de revelar uma compreensão forte de jornalismo, a primeira página só com notícias internacionais explicita uma específica e muito convicta compreensão do País. Diariamente o jornal alertava, de maneira contundente, que não enxergava futuro num Brasil isolado, sem consciência do que ocorria no mundo. E é aqui, nesse aspecto, que desejo me deter.
Olhar e conhecer o mundo não é uma espécie de entretenimento sofisticado. É tarefa essencial para o nosso desenvolvimento enquanto sociedade. Não podemos ser indiferentes ao mundo – e esse dever diz respeito não somente ao governo e a quem representa o País perante a comunidade internacional, mas a toda a sociedade.
De forma não exaustiva, elenco abaixo alguns pontos sobre os quais uma melhor compreensão do que existe e funciona nos outros países poderia ser de grande utilidade para o Brasil. Também para reconhecer e valorizar o que temos internamente. Olhar e conhecer o mundo não representa nenhum complexo de vira-lata.
Em primeiro lugar, conhecer as diferentes relações entre Estado e sociedade existentes no mundo. É muito positivo dar-se conta da possibilidade de outros arranjos, de outros equilíbrios, de outras formas de atuar, visualizando as fragilidades e as potencialidades de cada sistema. Sob essa perspectiva, olhar o mundo pode escancarar o muito que ainda precisamos avançar no respeito à lei e em sua aplicação. Ao mesmo tempo, ver a mudança promovida por alguns países ajuda a perceber que é possível avançar. Não é uma utopia.
O mesmo vale para o Judiciário. O atual debate sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) muito se enriqueceria se incluísse a compreensão do que ocorre em outras Cortes constitucionais. Não se trata de imitar nenhum país, mas de conhecer os respectivos regimes, seus fundamentos, suas funcionalidades e também suas tensões. Ter presente o panorama internacional contribuiria para que a discussão sobre o sistema de Justiça não seja simples torcida política.
Outro aspecto é o sentido de comunidade presente em cada país. Como se dão as relações sociais? Quais são os embates? Quais foram os caminhos trilhados para a promoção de um ethos de paz e liberdade? Funcionaram? Vislumbrar novos horizontes de convivência e de compromisso social é extremamente benéfico, especialmente nos tempos atuais de divisão e de brutalidade.
Um capítulo importante a ser conhecido são as políticas públicas prioritárias de cada país: o que deu certo, o que deu errado, como reduziram a pobreza e as desigualdades, como estão fomentando a economia. Olhar para o mundo pode ajudar a estabelecer internamente alguns consensos mínimos, que configurem a base para políticas de Estado, não sujeitas às variações de governo, em pontos essenciais para o desenvolvimento social e econômico do País.
Outros temas que me parecem fundamentais: o sistema educativo, os fatores de produtividade, o mercado de trabalho, a relação com o meio ambiente (tanto a cultura vigente em cada local, como a respectiva legislação). Sobre o meio ambiente, o Brasil tem muito a ensinar. Temos excelentes índices de energia limpa e consolidado conhecimento em aliar produção agrícola e preservação ambiental. No entanto, até para reconhecer o progresso feito – e como podemos contribuir com os outros países –, é preciso olhar para fora.
Nos últimos anos, o Brasil tem-se mostrado um tanto perdido nos rumos que deseja seguir, desperdiçando enormes oportunidades. A responsabilidade por isso não é só do governo de plantão ou do sistema político-partidário. A própria sociedade tem sido incapaz de produzir diagnósticos, de estabelecer diálogos, de gerar consensos que ultrapassem as perspectivas e os limites de cada setor. Tal dificuldade é sintoma, entre outros fatores, do nosso encerramento enquanto País. Continuamos extremamente fechados.
Na construção do País – no enfrentamento dos nossos problemas enquanto sociedade –, temos de ser capazes de vislumbrar novos e entusiasmantes horizontes possíveis. E, para isso, olhar e conhecer o mundo é essencial. O sonho de um Brasil mais justo e desenvolvido não é fruto de uma ilusão, mas deve ser decorrência de um profundo conhecimento da realidade, local e internacional.
ARTIGO1194