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Crise é oportunidade

Jomázio Avelar*

A atual crise financeira originada no berço do sistema econômico mundial é mais um sintoma; outros até mais graves tem acontecido e estão acontecendo que não representam interesses grandes e imediatos e, por isso, não tem tanta presença na mídia. A crise é efeito de uma causa que foi vendida com inteligência e implementada com eficiência nas últimas décadas, suportada pela revolução tecnológica da informação e da automação: a globalização.

A gestão da economia se alicerça em valores intangíveis – a ética e a moral – que decorrem do comportamento humano. A tecnologia é apenas veículo. A posição de liderança define responsabilidades, nem sempre assumidas por líderes políticos, empresariais, religiosos ou sociais. Nesse sentido, os líderes são, antes de tudo, mestres; seus gestos ensinam o bem ou o mal, a realização ou a omissão. Os bons omissos cedem lugar aos ativos, muitas vezes inadequado à posição. São as armas da ética e da moral que possibilitam liderar, com mais ou menos eficácia e eficiência, acerto ou erro, um mundo tão populoso.

O poder exibido pelo atual estágio de progresso material inebria o imaginário de mentes açuladas pelo aparato publicitário, e esconde a falta de solidez e segurança dos fundamentos: a formação filosófica e espiritual. A crise financeira atual é resultado de más escolhas num sistema frágil, que requer zelo e vigilância permanentes pelos cidadãos, principalmente pelos líderes.

A cidadania tem se mostrado como o elemento de fragilidade maior. A carência de formação filosófica e espiritual dos cidadãos é a causa da precária prática da cidadania. Sem cidadania governos não contam com apoio para governar, a começar por escolhas de maus governantes. Não são a pobreza e a ignorância as maiores contribuições à precária pratica da cidadania, mas a omissão dos letrados, que deveriam estar em posição de liderança, utilizandoa para conduzir e fundar suas decisões e condutas em bases éticas e morais acetáveis. São regras validas para todos, tendo o compromisso com o bem comum como cultura, pois a economia real é a que tem a ver com o cidadão comum, que depende de seu trabalho, da produção e do emprego.

Um cuidado maior dever ser observado com decisões que propagam seus efeitos por décadas, ou mesmo séculos, característica das decisões de organizações grandes, como governos e corporações empresariais, entidades de classe e sindicatos. São os casos de admissões de funcionários públicos, endividamento público, estatização indevida, legislação trabalhista e outros. Certamente, a mais importante das definições de estruturas decisórias é a não concentração de poder de qualquer natureza, o pluralismo, a sólida concepção de justiça e a orientação para o bem comum.

No cenário da crise, lidera o ator mais prestigiado da atualidade: o mercado. O mercado constitui um problema peculiar, distinto dos conhecidos na ciência política. Ele não tem agencias executivas ou legislativas capazes de recepcionar reivindicação ou lobby e, menos ainda, tribunais de justiça para apelação. Assim, ao contrário do soberano político, sensível à autopromoção, ao apresentar sentença de exclusão ou condenação social, ou profissional, como perdas financeiras, o mercado não permite apelação. É impossível apelar contra perdas na Bolsa de Valores. As sentenças do mercado, em geral, não só no financeiro, são tão rígidas e irrevogáveis quanto informais, tácitas e raras vezes declaradas em público. No Estado soberano cabe objeção e protesto, com chance, embora limitada, de anulação ou modificação parcial. No mercado não há juiz para julgar, nem sequer uma recepcionista para receber a petição. Cada vez mais o mercado se torna forte, ousado e obstinado, pela maneira como as decisões são tomadas e legitimadas.

A globalização que empolga os grandes grupos econômicos, as megaempresas e as empresas globais, cada vez maiores, em detrimento das de porte médio e pequeno, inviabilizadas, bem como da competição profundamente inibida, e do cidadão comum e profissional, mina a soberania do Estado, enfraquecendo-o e passando muitas de suas funções e prerrogativas aos poderes impessoais do mercado. Esse processo leva o Estado à rendição cada vez mais abrangente às forças do mercado, sem atender às políticas preferidas e endossadas pelo eleitorado e tomando dos cidadãos os status de detentor de poder e de árbitro final das propriedades políticas que a cidadania lhe asseguraria. O objetivo parece ser o de tornar o Estado cada vez mais despido do poder de estabelecer as regras e apitar o jogo, retraindo-se à contemplação e aceitação de novo papel, de executor da soberania do mercado, em que se incluem seus braços jurídico e contemplativo. As decisões são tomadas por cada vez menos pessoas e, o mais grave, são decisões mais impessoais. Cada vez menos se identifica a autoria das decisões. Um poder invisível, intangível, inaudível e insípido. Não se trata de promover estatização, mas reduzir o custo do Estado para fortalecê-lo (agora liberado de dívidas e encargos de juros que o submetem ao mercado). Assim ele pode ser colocado na posição de árbitro, ditando regras na relação entre o sistema produtivo poderoso e o social, em que se situam os cidadãos, pequenos empreendedores e profissionais, como elo mais fraco, que precisa ser amparado para ter oportunidade de progredir, sob normas legais e legítimas válidas para todos os cidadãos, origem e fim de tudo. Há na sociedade um evidente descolamento entre a capacidade profissional geradora e detentora de conhecimentos e tecnologias, e a potência comercial das corporações empresariais viáveis na globalização (empresas globais).

Grandes guerras e crises mundiais, como a atual, soa consequências de decisões de conteúdo moral e ético precário, tomadas por grandes organizações – do Estado ou do mercado – por poucas pessoas, negligenciando o princípio de assegurar a qualidade decisória – cidadania – para decisões acertadas. Essa concentração de poder, político e /ou econômico, opera a serviço do aumento da pobreza, da injustiça e da ignorância de milhões de seres humanos. O Estado federal, ou federalismo, descentralizado, fundado em preceitos democráticos, oferece melhores possibilidades de sucesso para o atingimento dos objetivos da sociedade de ter progresso material, embasado em conteúdo filosófico, em que os direitos e deveres fundamentam o balanço da conduta dos cidadãos. Os países precisam ter a estrutura de Estado para possibilitar uma formação filosófica e espiritual que viabilize o exercício da cidadania com entes federativos adequadamente contemplados com incumbências e responsabilidades. Essa estrutura irá assegurar que os poderes decisórios estejam mais próximos do cidadão, conforme seus interesses e suas possibilidades de ação, contribuindo assim para decisões mais acertadas, articulando resistência à invasão pelo mercado, restabelecendo assim os poderes do Estado, o qual tem endereço fixo e possibilidades de apelação. Ruim com Estado, pior sem ele. E, assim, o cidadão fará com que governos passem a governar para a sociedade e não só para o mercado.

É imperioso e oportuno atentar para a questão da dívida pública, que ocorre em quase todos os países e, de forma acentuada, no Brasil onde o precário equilíbrio das contas públicas ainda está baseado integralmente no aumento da carga tributária e na emissão de títulos públicos. A dívida condiciona tudo, não só os juros e os investimentos públicos, e torna o Estado uma presa do mercado. Não é verdade a alegação de que para o Brasil “sua importância é secundária, visto que, de qualquer forma, ela nunca será paga”. Tal atitude seria imoral por si mesma, o tomar emprestado para não pagar. Essa posição não pode ser assumida por líderes (o que estariam ensinando aos liderados e às gerações futuras?). Ela será paga, caso contrário o mercado não compraria os títulos públicos. O que é pior, é que a dívida drena anualmente, em juros, recursos atualmente da ordem de 160 bilhões de reais que poderiam estar aplicados no desenvolvimento do País (assim como em outros países), bem como na infraestrutura, na educação, na saúde e outras áreas, em síntese, no interesse da sociedade.

O fortalecimento do Estado implica sustar a política de os governos operarem em regime de não equilíbrio orçamentário, com déficit orçamentário causado por desmesurada despesa corrente. O setor público deve seguir as mesmas regras que as empresas privadas e as famílias, e reservar a emissão de títulos públicos para a implantação de empreendimentos de retorno financeiro assegurado – somente assim a dívida pública faz sentido.

O desequilíbrio orçamentário – despesa maior que receita – obriga os governos desprovidos de líderes capazes de tomar medidas eficazes à prática comodista de emitir títulos públicos para assim equilibrar as contas nacionais. É fácil compreender que cada parcela anual da dívida pública interna tem o caráter de tributação, pois tais recursos provêm da sociedade. Assim, a elevada carga tributária brasileira é acrescida mais metade da mesma, como evidenciam as leis orçamentárias anuais. Essa herança será deixada para gerações futuras, que, assim, viverão num mundo mais duro no plano econômico e mais conflituoso no social, com nítidas especificações de retrocesso e regressão, numa definição inequívoca de afastamento da orientação para o bem comum. A manutenção dessa situação é atribuível aos políticos, porém a responsabilidade de muda-la é de todos os líderes, incluídos os empresariais, os religiosos, os sociais, os acadêmicos e os sindicalistas.

O que informa a mídia parece ser um equívoco dos líderes dos países, que poderá custar caro à humanidade: tentar resolver a crise só com dinheiro público despejado no mercado (monstro insaciável que produziu a crise); tal recurso financeiro virá do contribuinte que será ainda mais sobrecarregado – sem atacar a causa que é o fato de o Estado estar enfraquecido, o mercado favorecido e o cidadão (também as pequenas e médias empresas e os profissionais) abandonado à própria sorte.

A solução da crise deve contar com suporte financeiro para dinamizar a economia real, combinado com reformas que deem orientação mundial para o bem comum, sob a responsabilidade de todos os líderes. A nova ordem é a redução do endividamento público de todos os países, por meio da redução de custo do Estado, e, assim, dotá-lo, bem como o mercado, de maior capacidade de investimento, limitando a emissão de títulos públicos a empreendimentos de retorno assegurado. Essa nova ordem visa o pleno emprego e a iniciativa empresarial para que a economia reencontre o dinamismo perdido, com base em méritos que decorram de valores éticos e morais aplicados a tudo e a toda humanidade. Isso sim, será capaz de reconstruir a confiança, fazer com que a esperança decorra da ação e não o contrário, para descortinar perspectiva otimista de sentido para a vida, a ser amplamente disseminada aos bilhões de seres humanos. Esse será o caminho mais curto e eficaz para que a crise passe. A crise é oportunidade de nova ordem mais virtuosa e humanista: uma nova globalização.

Pelo caminho da cidadania, que é o de maior controle e maior vigilância contra a concentração de poder do Estado e do mercado, devemos buscar a visibilidade dos autores nas decisões do mercado, e restaurar o poder político do cidadão para pôr limites ao Estado e ao mercado. Esse processo implica critérios de punições por más decisões, com sólidos fundamentos filosóficos e preceitos democráticos estatuídos a partir de conhecimentos humanos acumulados orientados para o bem comum. As decisões estarão mais próximas do cidadão e voltadas para o seu interesse, para dar sentido à vida das pessoas e propiciar melhoria nas relações humanas.

*Formado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da USP (1965). É Presidente do Conselho Brasil-Nação. Desde 1974, é Presidente da Evaldo Paes Barreto Ltda., empresa de engenharia consultiva e montagem hospitalar, fundada em 1947. É Presidente da Engecred (Cooperativa de Crédito dos Engenheiros, Arquitetos e Agrônomos de São Paulo). Foi Diretor da Construtora Heleno e Fonseca S/A até 1947. Foi membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia de São Paulo (1973-1974). Texto divulgado pela Revista FIDES (Fundação Instituto de Desenvolvimento Empresarial e Social), Ano XIII n.º 91, retratando o Seminário ALICERCES PARA UM PROJETO BRASIL realizado em São Paulo em 2008 (crise americana), juntamente com outros autores: Juvenal Savian Filho, Rubens Ricupero, Jose Roberto Nalini, Cezar Saldanha Souza Junior, Ernesto Lima Gonçalves, Rodrigo Thomaz Scotti Muzzi.

Fonte: Revista FIDES (Fundação Instituto de Desenvolvimento Empresarial e Social), Ano XIII nº 91

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