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Os ‘partidos’ estão partidos?

O desafio é proteger a representação política do assédio do poder econômico.

Bastou o início da nova legislatura para que se evidenciassem certas distorções do universo político brasileiro. A falta de efetivo compromisso com causas, ideologias e programas torna muito frágeis as alianças entre partidos, que sucumbem aos caprichos de interesses pessoais e de grupos, e implode a sinergia até mesmo no âmbito interno de cada agremiação. Assim, assiste-se com frequência a episódios surrealistas.

Os acontecimentos atuais deixam muito claro que a democracia brasileira, apesar de amadurecida e institucionalmente consolidada, necessita de uma reforma política. O último Código Eleitoral é remanescente de 1965.

A Coluna do Estadão do dia 31 de agosto informou que vem aí o 34.º partido político. O Ministério Público Eleitoral deu o aval para a criação da Unidade Popular Nacional (UP). O pedido será agora julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A notícia me fez reler o livro de Norberto Bobbio Contra os Novos Despotismos, em que o mestre italiano reafirma que “não é de hoje que os partidos estão em descrédito”. Para Bobbio, “partido” pode ter uma conotação positiva ou negativa segundo as circunstâncias e os humores. Para o saudoso professor, não basta mudar os “partidos”, é necessário eliminar a própria palavra ”partido”. O partido é uma associação de pessoas que fazem acordos para estimular certas decisões políticas mais do que outras, ou, como se lê na Constituição da Itália, “para determinar a política nacional”. Com esse objetivo concorrem para eleger representantes em vários órgãos democráticos, locais e nacionais. É muito difícil, para não dizer impossível, definir que coisa é um não partido. “Cabe tudo dentro do conceito puramente negativo do não partido” (Bobbio, obra citada, pág. 30).

Os partidos são associações privadas com funções públicas. Devem ter estatuto regulamentador dos seus objetivos e sua composição, estrutura interna e relações com as instituições. Sua presença, pondera Bobbio, implica inevitavelmente algumas perguntas: “Como se entra no partido? Quais as obrigações do inscrito? Entre estas existe também a obrigação de pagar uma cota de inscrição? Quais os órgãos de direção e de governo? É assegurada a democracia interna e como isso é feito?”.

Como reagiria o professor Bobbio diante da notícia que no Brasil os “partidos” são mantidos por um fundo partidário oficial que hoje beira quase R$ 2 bilhões e que se pretende duplicá-lo, tudo com recursos públicos?

O professor Bruno Reis, da Universidade Federal de Minas Gerais, em palestra no Conselho Superior de Estudos Avançados (IRS/Fiesp) constatou que a identificação do eleitorado com os partidos está em queda no mundo todo, por causa de fenômenos como a impotência dos governos nacionais diante da globalização e das mudanças tecnológicas, o crescente ativismo virtual e, em países como o Brasil, os recorrentes escândalos de corrupção. Mesmo que os partidos estejam se tornando obsoletos, isso não significa que a democracia funcione melhor sem eles. Na verdade, argumenta, seu enfraquecimento pode tornar o ambiente político ainda mais propício à corrupção. “Como o noticiário sobre corrupção, mundo afora, invariavelmente implica fortemente as estruturas dos principais partidos, hoje largas fatias de opinião se inclinam (e não apenas no Brasil) a se livrar deles”.

Sem partidos, ou com partidos fracos, fica bem mais barato comprar decisões políticas. O desafio reside em criar um sistema minimamente eficaz para proteger a representação política contra o assédio do poder econômico.

Ele manifesta dúvidas com relação a propostas inovadoras como candidaturas avulsas e critica a desqualificação mútua entre PT e PSDB. Ambos têm o direito de cultivar suas diferenças ao sabor de suas disputas. Mas, serviriam melhor ao País se parassem de se referir um ao outro como o bando de criminosos que ambos sabem que o outro não é.

Ao analisar o chamado “partido pessoal”, Bobbio esclarece que quando fala de partido pessoal pretende enfatizar o partido criado por uma pessoa, em contraste com o partido em sentido próprio, que consiste numa associação de pessoas. O partido pessoal é algo diferente do fato de que os partidos têm um líder ou alguns líderes. Todos os partidos têm um líder. Um partido que não tem apenas um líder é considerado um partido anômalo. A Democracia Cristã, na Itália, que foi um grande partido, sempre teve muitos líderes e por isso dominou por várias décadas a vida política italiana.

A propósito do chamado “socialismo liberal”, Carlos Rosseli tem recebido na Europa, após 50 anos de sua morte, um crescente reconhecimento pela sua lucidez e atualidade ao reconhecer que o socialismo não é nem a socialização, nem o proletário no poder, tampouco é igualdade material. O socialismo culto é a atuação progressiva da ideia de liberdade e de justiça entre os homens.

A unificação dos três Poderes num só homem ou num só grupo tem um nome bem conhecido na teoria política, chama-se despotismo, como o denominava Montesquieu.

Como dito antes, o desafio reside em criar um sistema eficaz para proteger a representação política contra o assédio do poder econômico.

Ao escrever sobre o momento político na Itália, em 1994, Bobbio relata que “naquela época venceu uma direita moderada contra uma extrema esquerda – a Frente Popular. Hoje venceu uma direita extremista contra uma esquerda em que predominava uma ala moderada. A esquerda não sai humilhada e a direita sai vencedora, porém dividida. O centro não desapareceu, resistiu. Trata-se de saber, indaga Bobbio, se é apenas o ramo seco de uma árvore velha ou a raiz de uma árvore nova.

Fonte: O Estado de S.Paulo, por: Ruy Martins Altenfelder Silva

*PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS E DO CONSELHO SUPERIOR DE ESTUDOS AVANÇADOS (CONSEA/FIESP)

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