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Nem a antipolítica, nem a política antipovo

Nem a antipolítica, nem a política antipovo

O que pôs a antipolítica no poder foi a política antipovo

O que arrebenta o Brasil é este “se ele é a favor eu sou contra”. Os desmandos de um lado não apagam as iniquidades do outro. Ver ameaça à democracia bastante para justificar derrubar um governo no meio de uma pandemia na existência de uma central de maledicência, mas achar perfeitamente “republicano” que o favelão nacional sustente as lagostas e vinhos tetracampeões de uma casta que vive acima até das leis que escreve para outorgar-se privilégios obscenos num país miserável dispensa qualquer argumento adicional para entender por que a antipolítica se instalou no poder.

As mentiras explícitas publicadas nas redes sociais são singelamente amadoras perto da mentira instilada diuturnamente pela omissão de publicidade ou pelo destaque e contextualização falseados que são os modos profissionais de fazer a mesma coisa. A humanidade, que convive com a mentira desde que existe, não precisa de uma elite de “intérpretes qualificados da realidade” para decidir em nome de todos quais as que devem ou não ter o direito de continuar sendo proferidas.

Censura, definitivamente, não! Ao Estado cabe julgar fatos, e não intenções. Deixemos estas para os ouvintes ou a arbitrariedade estará solta nas ruas e nada mais poderá deter a espiral da violência.

Os doutores Alexandre de Moraes e Celso de Mello, que afirmam de dedo em riste que “o presidente não pode servir-se do aparato do Estado para satisfazer seus interesses particulares”, são os mesmos que se servem do aparato do Estado para impor ao favelão nacional que os sustente, e às suas famílias e apaniguados, em padrões de potentados orientais e impõem que uns paguem a pandemia com a extinção dos seus empregos e salários miseráveis, enquanto outros fiquem incólumes, sustentados pelos primeiros.

Nada do que Jair Bolsonaro fizer poderá anular a indecência clamorosa dessa situação.

Sim, os servidores da linha de frente da saúde são os heróis desta pandemia. Mas, do front para cima, e não só, o SUS sempre foi um dos maiores ralos da República, usado e abusado como instrumento de empreguismo e chantagem eleitoral. A saúde pública sempre viveu no limiar do colapso porque os hospitais e equipamentos que os governadores e prefeitos não têm, como tudo o mais no Brasil, foram transformados em aposentadorias precoces e contratações em dobro de funcionários indemissíveis para todo o sempre com direito a aumentos anuais automáticos que consomem tudo e mais um pouco do que os governos arrecadam com a carga de impostos economicamente necrosantes mais tóxica e pesada do planeta.

Nada disso anula, entretanto, a realidade que daí decorre, de que manter a quarentena na maior medida possível é o recurso que nos resta para evitar todas as funestas consequências desses desvios. Jair Bolsonaro faz questão de provar todos os dias o desagregador temerário e irresponsável que é, mas o povo não desrespeita a quarentena só porque ele quer. São os pais e os filhos do povo que estão morrendo como moscas no pesadelo de terror adicional ao pesadelo de terror cotidiano que é viver no favelão nacional, onde 60 mil pessoas são assassinadas por ano. O povo não faz quarentena essencialmente porque não pode. E o que há de mais execrável no comportamento destrutivo de Jair Bolsonaro não é “causar” essa desgraça, é, como todos os demais, tentar explorá-la eleitoralmente, embora na direção inversa dos que querem pôr a culpa de tudo – e como sempre – nas vítimas.

No que se refere à raiz mais profunda dessa desgraceira toda, a diferença entre Bolsonaro e o STF, para além do refinamento e do grau de ilustração, é, portanto, que um tem 58 milhões de votos e os outros não têm nenhum, coisa que numa democracia representativa impõe uma diferença reverencial de tratamento, mas que encontrará fatalmente o seu limite se ele continuar a ser procurado com tanto empenho e com tanta truculência. “Brasil acima de tudo”! Mas a verdade cristalina é que nenhum dos dois, assim como os seus caronas nem um pouco desinteressados, quer mudar essencialmente o que está aí.

A palavra “Constituição” não empresta o sentido que têm as Constituições instituídas pela revolução democrática (que o Brasil nunca fez) a essa ferramenta nunca referendada senão por quem, desde 1988, a escreve e reescreve a gosto para espichar a privilegiatura que parasita o Brasil. Invocar sua intocabilidade como garantia do “Estado Democrático de Direito” só por essa coincidência de nomes de batismo é uma mentira tão cínica quanto pregar reformas e trabalhar para que elas não sejam feitas.

O que pôs a antipolítica no poder foi a política antipovo. Ter aquilo a que o Brasil já disse um maiúsculo NÃO como única alternativa ao que esta aí é tolerar o intolerável. Os “pilares” resumem bem: nem a leniência com a corrupção (especialmente a institucionalizada, que nos rouba com a lei) nem a permanência do Estado nas costas da Nação. A única forma democrática de se abordar o drama brasileiro é assumir o “lado” do favelão nacional e avaliar cada passo pela distância em que ele porá o povo da condição de controlar efetivamente os políticos. O resto é jogo de interesses.

Fonte: Fernão Lara Mesquita, O Estado de S.Paulo | JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM
05 de maio de 2020 | 03h00

Nota do autor: Artigo escrito antes da nomeação provocativa do substituto de Ramagem, que põe Bolsonaro mais longe do interesse do Brasil.

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