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Classe média endividada exige sua parte em crescimento econômico do Chile

Saturados por dívidas, estudantes e aposentados chilenos se revoltam contra valor de pensões e custo elevado de ensino, saúde e transporte; entre as reclamações principais está a falta de poder do Estado para monitorar a alta dos preços

Rodrigo Cavalheiro, ENVIADO ESPECIAL A SANTIAGO – 03 de novembro de 2019 | 05h00

A revolta chilena ganhou corpo quando o governo de Sebastián Piñera ridicularizou suas exigências iniciais e logo tornou-se a maior mobilização pós-ditadura, em reação ao uso do Exército na repressão. Mais de um milhão foram às ruas. A raiz da insatisfação, entretanto, está em distorções acumuladas por décadas, em governos de direita e de esquerda, escondidas em bons indicadores macroeconômicos que não se converteram em alívio nas contas, pelo contrário.

Os chilenos nunca estiveram tão endividados. De tudo que uma família recebe no Chile, 73% são dedicados a pagar dívidas, segundo o Banco Central. Em um dos cafés abertos em Santiago, na sexta-feira, um feriado que terminaria em violentos protestos, o garçom Alejandro Segovia, de 30 anos, comentava, sem moderar a voz, não entender a boa imagem chilena no exterior.

“Quem não se endivida no Chile, não vive”, disse ao Estado, enquanto servia um café expresso vendido a R$ 10,20. O custo de vida e os baixos salários têm relação direta com a crise. A oferta de educação e saúde gratuitas existe, mas fica restrita aos mais pobres. E este não é o rosto desses protestos.

Os atos têm a cara da classe média. Mais exatamente de jovens e seus avós – que não querem mais endividar-se com as cotas de aposentadoria, ensino, saúde e transporte. Seus cartazes não pedem estatização desses setores. Denunciam a falta de poder do Estado para monitorar a alta dos preços.

Quando a tarifa do metrô foi elevada em 30 pesos (R$ 0,16), o que detonou o descontentamento entre estudantes há três semanas, tratava-se do 21.º aumento em 12 anos. Para atravessar Santiago, um motorista passa por oito pedágios.

Aos 30 anos, Segovia sabe que estará endividado até os 50. Terá de pagar 240 parcelas, hoje de 58 mil pesos (R$ 311), pelo curso de nível técnico de quatro anos em administração de empresas. No total, R$ 43 mil.

Ele não tem alternativa. Para tentar uma bolsa, precisaria ter renda inferior a 200 mil pesos (R$ 1 mil). Só que recebe o salário mínimo. São 301 mil pesos (R$ 1,6 mil) por mês, que passarão a 350 mil pesos (1,8 mil). O aumento foi uma das concessões feitas por Piñera, em um pacote de US$ 1,2 bilhão.

Além de anular o aumento no metrô, o presidente elevou o mínimo, suspendeu reajustes de pedágio, mudou o gabinete. Recuou até no principal ponto de sua reforma tributária, uma renúncia fiscal de US$ 800 milhões por ano, planejada para atrair empresas.

Pesquisa da consultoria Cadem feita ainda durante o estado de emergência e antes da marcha que reuniu mais de um milhão no dia 25, dá a ele aprovação de 14%.

“Piñera é um pato manco, como dizem os americanos (presidente que segue no cargo, mas sem poder). Se já não cumpriria suas metas, muito menos agora”, avalia o cientista político Raul Sohr. “Antes de assumir, em 2010, pegou um terremoto que matou 800. E agora este, político”, lembra.

Entre 1965 e 2014, a renda per capita chilena aumentou de US$ 14 mil para US$ 36 mil. A questão é que a maior parte da população não se vê vivendo naquilo que Piñera chamou de “oásis” dias antes de os protestos começarem.

Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social, em 1990, a pobreza no Chile superava os 43%. Hoje, é de 10%. “Isso fez surgir uma classe média baixa altamente vulnerável, com risco de cair novamente na pobreza. Eles são os novos indignados, um terço”, diz Mario Waissbluth, especialista do centro de sistemas públicos da Universidade do Chile.

Conforme o sociólogo Alejandro Marambio, professor da Universidade Católica de Maule, o endividamento chileno tem como peculiaridade o fácil acesso empréstimos em grandes lojas. O principal modo de se endividar são os cartões de crédito desses estabelecimentos (42% dos casos). “Em geral, são compras de bens básicos”, explica.

Uma simplificação corrente sobre os atos no Chile é que eles seriam de esquerda ou contra o neoliberalismo. Há 83% de apoio às manifestações, segundo a consultoria Activa Research, o que coloca entre eles boa parte dos eleitores de Piñera. Um sintoma dessa transversalidade ideológica são protestos inéditos em zonas de alto padrão, como Las Condes e Barrio Alto.

Os liberais descontentes alegam que a riqueza do país, um polo de mineração e pesca, parou na mão de famílias beneficiadas com as privatizações conduzidas pelo ditador Augusto Pinochet. “As privações de Pinochet foram um escândalo. Poucas famílias se tornaram donas de gigantescas estatais sem pagar um peso. Essas fraudes são conhecidas”, critica o analista Mario Waissbluth.

A Constituição chilena, de 1980, foi escrita 10 anos antes do fim da ditadura (1973-1990). Um de seus eixos é dar ao Estado um papel subsidiário, o que explica as poucas ferramentas de controle sobre a iniciativa privada. Esta é agora a única concessão que interessa aos manifestantes: uma reforma constitucional que permita ao Estado controlar abuso de preços.

Outro equívoco em relação ao movimento chileno é reduzi-lo a um ato contra a desigualdade, pois só ela não explicaria o seu alcance. O Chile é o sétimo país mais desigual do mundo, de acordo com o Coeficiente de Gini, mas está atrás de Haiti (2.º), Honduras (3.º), Colômbia (4.º), Brasil (5.º) e Panamá (6.º). O mais desigual é a África do Sul. Entre esses países, o Chile é o de melhor nível educacional, o que poderia explicar o inconformismo.

“Em boa parte, estamos falando em desigualdade no tratamento, de oportunidades. Há uma desigualdade material, mas há uma indignação com o fato de o país ter crescido muito e vários não terem influência política”, diz Eduardo Engel, professor da Universidade do Chile e diretor do centro de estudos Espaço Público. Sua interpretação reforça a mensagem de uma das pichações que tomaram todos os prédios nos dois quilômetros que separam a Praça Itália, centro das manifestações, do Palácio La Moneda. “Não são 30 pesos, são 30 anos.”

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