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A década da ansiedade

Os anos 2010 foram marcados pelo aprofundamento da polarização política como forma de lidar com o medo daquilo que não se sabe

“A ansiedade é a tontura da liberdade”
Soren Kierkegaard

 

Para alguns, a década prestes a se encerrar foi de rupturas. Na economia, a crise global de 2008 redefiniu os rumos da política econômica ao longo de todo o período transcorrido entre 2010 e o fim de 2019: velhos dogmas caíram por terra, como o de que inflação seria a consequência inevitável da emissão de moeda em grandes quantidades que ainda fazem os bancos centrais nos países desenvolvidos. Na política e nas relações internacionais, o repúdio à globalização, que parecia bem estabelecida durante os anos 1990 e o início dos anos 2000, fez ressurgir o nacionalismo estridente em seus diversos matizes. Na vida social e política, o alcance das mídias sociais contribuiu para exacerbar a polarização de arranjos, práticas e opiniões, abalando instituições que haviam sido concebidas para facilitar a convergência ao centro e à moderação. Tudo isso pode ser interpretado como ruptura. Mas tudo isso também pode ser interpretado como uma vertigem da liberdade, fruto de uma ansiedade causada por um mundo em contínua transformação.

A constatação de que as políticas econômicas não funcionavam mais como imaginávamos foi fonte de grande ansiedade ao longo da década. Como impedir que o abalo financeiro de 2008 se transformasse em profunda depressão econômica, tendo os instrumentos macroeconômicos se esgotado: os juros reduzidos a zero, a política fiscal com pouca margem de manobra ante dívidas elevadas? A ansiedade provocada por essas perguntas levou, no início da década, a uma profunda transformação na maneira de se pensar e de se fazer política monetária. Vieram os afrouxamentos quantitativos – as políticas de emissão monetária em grande volume pelos bancos centrais; vieram, também, as antes impensadas taxas de juros negativas. A ausência de pressões inflacionárias nos países desenvolvidos proveniente dessas medidas revolucionou a macroeconomia. Economistas e gestores de política econômica foram forçados a repensar todo o arcabouço teórico que sustentara durante décadas o que parecia ser um entendimento profundo dos canais de transmissão e dos efeitos associados ao uso desse ou daquele instrumento na economia. Esse esforço de reformulação está em curso, e isso é algo positivo. Há muito o que repensar na macroeconomia.

Os anos 2010 viram renascer, além disso, a preocupação da economia com a desigualdade e as suas diversas ramificações e inter-relações com o campo das ciências sociais. Como medir a desigualdade? Por que, ante todo o progresso alcançado, ela ressurgiu, sobretudo nos países avançados? O que fazer para combatê-la? A ansiedade derivada dessas perguntas tem sido fonte de grandes avanços na discussão do tema tanto entre acadêmicos quanto no público geral. Já não é mais possível tratar de política econômica sem olhar o tema da desigualdade. Já não é mais possível separar a política da justiça social. A vertigem da liberdade está em perceber que não há liberdade com injustiça social. O que fazer com isso, como repensar o conceito de liberalismo nesses termos será tarefa para a próxima década, e uma tarefa a ser cumprida em meio às transformações que já sabemos que nos esperam. Novamente, essa ansiedade haverá de ser a força propulsora de novas formas de refletir e de tentar entender problemas que requerem não só conhecimento, mas criatividade.

A ansiedade também se exprime de formas menos auspiciosas, evidentemente. Os anos 2010 foram marcados pelo aprofundamento da polarização política como forma de lidar com o medo daquilo que não se sabe. O medo, quando exacerbado, provoca a busca por explicações simplistas e por bodes expiatórios. A política nesse fim de década está repleta de exemplos de como esse medo se expressou: das promessas falaciosas do Brexit e de Donald Trump às falsas esperanças atreladas ao bolsonarismo. O bolsonarismo, aliás, pode ser encarado como expressão extrema da ansiedade – uma espécie de crise de pânico que acometeu a sociedade brasileira em um desenlace traumático do petismo. A crise de pânico ainda domina o discurso, a falta de rumo, a estridência que acometeu o Brasil. Para resolvê-la, de nada adiantará apegar-se ao pensamento mágico de que tudo mudou porque o ministro Y ou Z está lá para transformar o País. Há muita gente no Brasil, sobretudo no ministério bolsonarista, que não entendeu o quanto o mundo mudou nessa última década, e que se apega às suas referências e conceitos ultrapassados para responder perguntas erradas, anacrônicas. O fiscalismo estreito, o Estado mínimo, boa parte da agenda de reformas econômicas estão em rota de colisão com a desigualdade. Não reconhecer isso é não entender nada do que ocorreu nos últimos dez anos.

A partir de primeiro de janeiro de 2020 iniciaremos década em que, aplacada a ansiedade pelo Brexit, testemunharemos os efeitos da ansiedade por suas consequências. Com o freio na globalização, nela testemunharemos o contínuo desabrochar de movimentos nacionalistas, em que a desigualdade, a injustiça e a segmentação social continuarão a testar as instituições que não souberam se adequar ao mundo. A ansiedade provocada pelas mudanças climáticas poderá trazer grandes inovações na forma de desenhar mercados e instrumentos de política econômica, a exemplo do que têm pensado as lideranças europeias. A ansiedade provocada pela corrida tecnológica e pelo crescente domínio da China poderá ter graves consequências para a organização geopolítica e econômica do mundo.

O Brasil terá de escolher. Escolher se quer continuar a se desintegrar em meio à crise de pânico ou se pretende libertar-se da vertigem coletiva para integrar os novos debates que estarão ocorrendo, com ou sem o País. Feliz 2020.

Fonte: O Estado de S. Paulo | Monica de Bolle | 29 de dezembro de 2019 | 05h00

ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY 

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