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A morte da ganância

Para ex-diretor do Banco Mundial, a ganância está condenada à morte

Paul Collier, autor de “O Futuro do Capitalismo”, diz que o individualismo levou à polarização, mas prevê renascimento do pragmatismo

Por Giuliano Guandalini — Para o Valor, de São Paulo – 11/12/2020

Ex-diretor do Departamento de Pesquisa do Banco Mundial e professor de Oxford, o economista Paul Collier, 71 anos, também é autor do livro “O Futuro do Capitalismo” — Foto: Bloomberg

“Greed is good!” Ser ganancioso é bom, proclamava Gordon Gekko, o financista e especulador vivido por Michael Douglas em “Wall Street: Poder e Cobiça” (1987), filme de Oliver Stone e referência de uma geração. O personagem retrata o elogio ao individualismo extremo e por vezes inescrupuloso. “Greed Is Dead”, anuncia o título do novo livro do economista inglês Paul Collier, escrito em parceria com o economista John Kay. “A ganância é um conceito eticamente indefensável”, afirma Collier. “Além do mais, ela não funciona. Na verdade, destrói o capital das empresas.”

Para Collier, o enfraquecimento do sentido comunitário e a ascensão do individualismo exacerbado enfraqueceram a capacidade de as sociedades se unirem em torno de propósitos comuns. O individualismo não está apenas no mundo empresarial e financeiro, mas também na política. Não é também exclusividade da direita. Os partidos, na avaliação do economista, são hoje controlados por pessoas extremamente bem-sucedidas, que estudaram em boas universidades e vivem em bairros nobres das melhores cidades, mas estão distantes das pessoas comuns das cidades decadentes do interior.

“Esses políticos não perceberam a crise que as pessoas simples das cidades afastadas das metrópoles cosmopolitas estão vivendo. Alguns desses políticos veem essa gente mais simples com um certo desprezo. Um exemplo do que estou falando foi o comentário de Hillary Clinton, na campanha de 2016, chamando de ‘cesta de deploráveis’ os eleitores de Trump.”

Esses eleitores, por se sentirem abandonados, estão mais sujeitos a votar nos “charlatões populistas”, argumenta Collier. O centrista Joe Biden representa a oportunidade de um governo mais pragmático. A polarização ocorre, diz o professor de Oxford, quando os individualistas prevalecem na direita e na esquerda. Os políticos mais comunitários, centristas, são mais flexíveis e pragmáticos. É assim que se pode construir acordos mais amplos para apoiar projetos comuns de interesse da população.

Collier, de 71 anos, é professor de economia e políticas públicas na Universidade de Oxford. De 1998 a 2003, foi diretor do departamento de pesquisas em desenvolvimento econômico no Banco Mundial. Já morou em países na África e na Ásia. Nascido em Sheffield, no interior da Inglaterra, acompanhou de perto a derrocada social de uma cidade que entrou em decadência depois de a produção de aço ter sido transferida para países asiáticos.

O professor, que participou do projeto Fronteiras do Pensamento, conversou com o Valor. A seguir, trechos da entrevista.

Valor: Trump obteve uma votação mais expressiva do que projeções haviam estimado. Os republicanos se saíram bem nas cidades menores, em regiões nas quais vivem os chamados perdedores da globalização. Quais são as suas impressões sobre o resultado eleitoral nos EUA?

Paul Collier: Infelizmente, devo dizer que meu livro “O Futuro do Capitalismo” foi preciso com relação a isso. O que temos observado, nos últimos 40 anos, é uma dispersão espacial no que diz respeito à escolaridade. As pessoas de menor nível educacional vivem longe das grandes áreas metropolitanas. Essas pessoas foram abandonadas pelos políticos tradicionais, aqueles que estão no comando dos partidos políticos. Por muito tempo, essas pessoas não se manifestaram. Mantiveram-se caladas. Isso aconteceu nos EUA e também na Inglaterra. Vimos algo parecido na Itália, na França. Até que um dia apareceram os charlatões populistas que não têm nada a oferecer, mas sabem explorar as ansiedades dessa parcela da população.

Valor: Como isso ocorreu?

Collier: Isso foi possível porque os partidos políticos, à direita e à esquerda, são dominados por gente que estudou nas melhores escolas e que vive nas áreas nobres das grandes cidades. Esses políticos não perceberam a crise que as pessoas simples das cidades afastadas das metrópoles cosmopolitas estão vivendo. Para piorar, alguns desses políticos veem essa gente mais simples com certo desprezo. Um exemplo do que falo foi o comentário de Hillary Clinton, na campanha de 2016, chamando de “cesta de deploráveis” os eleitores de Trump.

Como alguém de esquerda, como Hillary, pode ter ficado feliz com o fato de ter conquistado

70% dos votos nas regiões mais ricas? São áreas que dominam 70% da economia americana.

As estatísticas foram parecidas para Joe Biden agora: obteve 75% dos votos nas regiões mais ricas. Não é algo que deveria ser festejado por um partido de esquerda. Eles deveriam estar preocupados. Não parece ser boa ideia desprezar a população esquecida. Elas acabam votando nos charlatões justamente porque se sentem abandonadas, porque não têm sido ouvidas pelos políticos.

Valor: Joe Biden pode mudar isso?

Collier: Biden, ao menos, é uma exceção. Ele cresceu no meio do nada, sempre foi um centrista pragmático. Isso o ajudou a conquistar votos que anteriormente foram para Trump: tipicamente, o homem branco, com baixa escolaridade, morador de regiões decadentes. Esse foi o grande grupo que, na eleição passada, havia migrado para a direita e dado a Trump o benefício da dúvida de que ele, Trump, seria um deles – e, como sabemos, não era. A verdade é que os partidos se tornaram pouco representativos do eleitor comum. Tanto o Democrata como o Republicano. Ambos são controlados por pessoas que começaram cedo na política e não fizeram nada além disso ou por advogados bem-sucedidos ou algo do tipo. Cinquenta anos atrás, era comum ver políticos que vinham de baixo, com um histórico de lidar com problemas locais.

Valor: O que explica essa transformação?

Collier: O que estamos vendo na política americana é a consequência de 40 anos de uma divergência crescente. Um dos sintomas é o aumento na desigualdade. Creio que a grande razão dessa transformação seja a ascensão do individualismo. Coincidentemente, esse é também o diagnóstico do cientista político Robert Putnam, que lançou recentemente o livro “The Upswing”. Ele identifica não apenas a ascensão do individualismo, mas o retrocesso nos propósitos comuns das comunidades. Houve um enfraquecimento do espírito comunitário. A mensagem é muito parecida daquela dos meus livros mais recentes, “O Futuro do Capitalismo” e “Greed Is Dead”. O trabalho de Putnam mostra como no início do século XX também havia ocorrido ascensão do individualismo. A descrição que ela faz da sociedade americana no ano 1900, individualista e egoísta, assemelha-se àquilo que vemos hoje. Mas, entre esses dois, tínhamos visto ocorrer um avanço do espírito comunitário, que durou até os anos 1960. O individualismo começou a ganhar força em meados dos anos 1960. Daí a polarização nos EUA. Podemos notar isso com relação à covid-19.

Valor: Qual a relação entre a covid-19, individualismo e polarização?

Collier: Compare os EUA com a Dinamarca. Os dinamarqueses possuem uma sociedade comunitária. Constroem com mais facilidade projetos com objetivos e propósitos comuns. A primeira-ministra consegue fazer chegar à população a sua mensagem de que as pessoas precisam cuidar umas das outras, precisam proteger os vizinhos. Assim, a Dinamarca foi capaz de limitar os efeitos da pandemia e ao mesmo tempo não impor grandes perdas à educação ou à economia. E o que vimos nos EUA? Pessoas fazendo filas nas portas das lojas de armamentos. O espírito entre os americanos não foi “proteja o seu vizinho”, mas “dê um tiro no seu vizinho”. Dar um tiro no vizinho não é uma estratégia inteligente para enfrentar uma pandemia. Os americanos estão passando por um período terrível em termos de mortalidade e também na economia. Isso se deve ao fato de a sociedade não ter sido capaz de construir um propósito comum para o enfrentamento da covid-19.

Valor: Por que a polarização chegou a esse ponto, tendo em vista que o país foi fundado sob um espírito comunitário?

Collier: De fato, os “founding fathers” (pais fundadores), no fim do século XVIII e início do século XIX, eram dotados de espírito comunitário. Mas isso foi destruído a partir de meados dos anos 1800. O país saiu polarizado da Guerra Civil (1861-1865). Depois, nas primeiras décadas do século XX, o país começou a se unir em torno de propósitos comuns. O comunitarismo teve o seu auge no período após a Segunda Guerra (1939-1945). Durou até os anos 1960. Na sequência, veio o ponto de inflexão, em meados dos anos 1960. Foi quando começamos a falar “eu”, em vez de “nós”.

Valor: A recessão do espírito comunitário, então, ocorreu antes do colapso do Muro de Berlim (1989) e do triunfo do capitalismo. O que levou à proeminência do individualismo?

Collier: É difícil apontar para uma única causa. Houve uma série de fatores interconectados, mas devemos olhar para a mudança cultural. Pude observar, por exemplo, como, a partir dos anos 1960, os estudantes passaram a enfatizar o individualismo. Essa cultura foi se intensificando. Uma evidência atual são as “selfies”. Oxford recebe milhares de turistas. Muitos deles mal observam a cidade; ela serve apenas de cenário para as suas fotografias ou vídeos. A obsessão dos jovens turistas é postar uma foto. Olham a cidade por meio das telas pequenas de seus celulares e nem mesmo observam ao seu redor para ver o que está diante da câmera.

Valor: O Brasil é muitas vezes comparado aos EUA, no que diz respeito à polarização e à ascensão do populismo. Qual a sua avaliação?

Collier: Não conheço a fundo o seu país, mas me parece uma sociedade polarizada. Posso imaginar que a situação se deve ao fato de, como ocorreu em outros países, os políticos tradicionais não estarem fazendo um bom trabalho, não estavam cuidando adequadamente dos problemas que afligem as pessoas comuns. Isso não quer dizer que devam vender a ideia de que as soluções para os problemas sejam simples. Os políticos ganham a confiança da população quando são honestos com relação àquilo que podem ou não realizar.

Sistematicamente, ao longo dos últimos anos, os políticos prometeram demais e entregaram pouco. Como resultado, perderam a confiança dos eleitores. Houve colapso na confiança. É algo que precisa ser reconstruído.

Valor: Com a globalização e a expansão do capitalismo, ganhou força o elogio da ambição como sendo uma qualidade essencial para a produtividade e a prosperidade. Acredita que a ambição saudável tenha dado lugar à ganância?

Collier: “Greed is good!” Não é esse o lema? Queremos as pessoas mais espertas no topo, e elas devem ter fome de poder. Devemos incentivar a ganância para o benefício da companhia, distribuindo as opções de ações para os executivos. Esse foi o universo que criamos nos últimos 40 anos. A mensagem que procuramos passar em “Greed Is Dead” é que a ganância é intelectualmente indefensável. Precisamos de um novo tipo de liderança, capaz de compartilhar os propósitos comuns de uma empresa. Não precisamos de um comando centralizado no topo. As decisões devem ser descentralizadas em diferentes equipes, que vão se esforçar para encontrar soluções diversas para as novas situações que forem surgindo. É necessário ter combinação de experiência e prática. Não é fácil disseminar o conhecimento adquirido pela experiência. É algo que um bom professor consegue fazer, mas dando autonomia para as pessoas. Não deve ser algo centralizado, nas mãos dos mais espertos.

Valor: O senhor enfatiza a necessidade de as empresas possuírem propósito. Esse é um discurso comum a quase todas as grandes companhias hoje. Vê isso ocorrer na prática?

Collier: Existe muito cinismo, mas há também empresas genuinamente interessadas em ter um propósito. O problema, muitas vezes, é definir quais são os investimentos éticos, quais os indicadores de um portfólio ético. Não há critérios bem definidos. É algo que precisa ser resolvido. O que veremos cada vez mais, nos próximos anos, é a migração de capital de países ricos do Norte para mercados emergentes, em busca de rendimentos mais elevados. Vejo grande potencial de impacto social para os países do Sul. Mas parte desses investimentos podem não acontecer por causa das restrições impostas pelos investidores dos fundos de pensão devido a questões como a corrupção, em setores como a exploração de recursos minerais.

Valor: O que precisa ser feito para conter o individualismo extremo e recuperar o senso comunitário?

Collier: O que posso dizer é que não precisamos de líderes mágicos. Temos tendência de enfatizar os líderes mágicos, tanto na política como no mundo dos negócios. Desenvolvemos uma convicção de que o governo tem os deveres, e nós temos os direitos. Isso não é bom. Todos os cidadãos de uma sociedade têm as suas obrigações. As empresas também possuem obrigações, e não apenas com os seus acionistas. Cada um de nós precisa assumir a sua parcela de responsabilidade, seja como cidadão, seja em nossas atividades profissionais. Precisa haver um senso de propósito compartilhado. Ninguém sai da cama e diz “Hoje eu vou maximizar os lucros dos acionistas!”. A maioria das pessoas deseja se ocupar com algo de que elas possam se orgulhar.

Valor: Mas existem executivos e companhias que agem dessa maneira, colocando o lucro como único objetivo.

Collier: Sim, mas não faz o menor sentido, porque, com o tempo, isso não dará resultados. John Kay, coautor de “Greed Is Dead”, é um dos maiores economistas do Reino Unido no estudo empresarial. Ele é enfático em afirmar que esse tipo de comportamento numa corporação não funciona, porque a empresa acabará destruindo capital. Isso me faz lembrar o banco de investimentos Bear Stearns, que mantinha no alto da sua sala de operações o slogan “Nosso único negócio é ganhar dinheiro”. Que inspirador, não? Que tipo de pessoa está disposta a trabalhar para uma empresa cujo único negócio é ganhar dinheiro? Bem, as pessoas dispostas a trabalhar em uma empresa assim logo descobrem que a única maneira de elas ganharem dinheiro é realizar operações arriscadas, desde que ganhem os seus bônus antes de o negócio quebrar. Não haver um propósito que motive as pessoas serve apenas para atrair a pior qualidade de pessoas. A maioria das pessoas não espera fazer fortuna, mas trabalhar em algo que lhes dê orgulho. O desastre é que o comportamento individualista de empresas privadas contaminou as instituições políticas.

Valor: Como isso se manifesta na política?

Collier: Existem comunitários e individualistas tanto na esquerda quanto na direita. Há conflito permanente entre os indivíduos de cada corrente no interior dos partidos políticos.

Quando os comunitários prevalecem simultaneamente na esquerda e na direita, é possível haver a colaboração para traçar objetivos comuns e fazer acordos. Os comunitários conseguem selar compromissos mais facilmente com os seus adversários. São pragmáticos e mais flexíveis a reformas nas políticas públicas. Mas, ao contrário, quando prevalecem os individualistas em ambos os lados, aí teremos a polarização. Não precisamos continuar dessa maneira. Já fomos mais comunitários. Trata-se de algo natural para o ser humano construir sistemas para nos apoiarmos uns aos outros. O conceito central é reciprocidade. Quero crer que a maré esteja virando a favor do comunitarismo. Vários livros recentes tratam desse tema.

Valor: Poderia dar exemplos?

Collier: Já citei o livro de Robert Putnam, “The Upswing”, que trata desse fenômeno. Outro exemplo é o novo livro do filósofo Michael Sandel, “A Tirania do Mérito”. Ele traz citações idênticas às que usamos em “Greed Is Dead”. Nós não nos conhecemos pessoalmente, mas, de alguma maneira, estamos unindo forças para divulgar a mensagem de necessidade de resgate do comunitarismo em oposição ao individualismo. Outro é o livro “The WEIRDest People in the World”, de Joseph Henrich, que mostra, com bases biológicas, como somos seres profundamente comunitários. Posso citar ainda “The Third Pillar”, do economista Raghuram Rajan. São muitos. O ponto de inflexão tem início quando as ideias gradualmente se disseminam. Por isso tenho a convicção de que a ganância esteja intelectualmente morta. Daqui a cinco anos, ninguém mais estará proclamando que “greed is good”.

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