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A municipalização do ensino fundamental

O Estado de S. Paulo, 13/02/1996, José Goldemberg

“A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios 25% no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino”. Constituição, artigo 212

Surgiu e recentemente na imprensa uma forte controvérsia sobre o cumprimento do artigo 212 da Constituição Federal. O problema foi provocado pelo Banco Central ao argumentar que a Prefeitura de São Paulo havia gasto, em 1994, menos do que devia em educação e não podia, por essa razão, rolar sua dívida com a União. O prefeito de São Paulo argumentou que o Tribunal de Contas do Município havia aprovado as suas contas e que o dispositivo constitucional cumprido. No Estado de São Paulo, a fração dos impostos destinados à educação é de 30%.

Logo a seguir ficou evidenciado, porém, que, em inúmeros municípios do Estado de São Paulo (mais de 500), os prefeitos têm dificuldades em gastar 30% em educação uma vez que a grande maioria das escolas é estadual (cerca de 80% delas). Isso tem gerado abusos como o de usar recursos da educação para frotas de transporte, conservação de praças e jardins, asfaltamento de estradas e até a construção de pontes.

A situação é tão grave em todo o Brasil que o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, propôs uma alteração da Constituição que obrigaria os prefeitos a gastar pelo menos 60% dos recursos da educação em ensino de primeiro grau, forçando, com isso, na prática, uma municipalização do ensino básico.

É lamentável que medidas legais, que no fundo, são coercitivas, tenham que ser adotadas para forçar os prefeitos a colocar recurso numa área que deveria ser uma das suas primeiras prioridades e que eles deveriam adotar com entusiasmo.

A verdade, porém, é que a grande maioria dos prefeitos tem outras prioridades de maior impacto eleitoral e se guiam por elas. Mesmo na polêmica do prefeito Paulo Maluf com o Banco Central não ficou evidente um outro problema sério com as verbas da educação e que tem a ver com o fato que a Constituição determina que sejam gastos com a educação 30% da receita dos impostos o que levou muitas prefeituras a criar taxas, emolumentos, contribuições, multas, etc, que não são impostos e que, portanto, não redundam em recursos. Essa é uma estratégia muito usada para – através de um eufemismo – reduzir os recursos para essa área. Há alguns anos – só para dar um exemplo –, a Prefeitura de São Paulo aplicava 30% dos impostos em educação, mas correspondiam a apenas 10% de tudo o que a Prefeitura arrecadava.

O que isso significa é que muitos políticos brasileiros ainda não se convenceram da importância da educação e nem perceberam que, até do ponto de vista eleitoral, esta área poderia ser útil a eles.

A origem desta postura parece remontar ao período Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945), e até antes. Nas palavras de Boris Fausto, em sua excelente História do Brasil publicada recentemente: “no governo Vargas… o Estado tratou de organizar a educação de cima para baixo, mas sem envolver uma grande mobilização da sociedade”.

O autoritarismo do governo Vargas teve como consequência o abandono das responsabilidades pelo ensino básico por parte das prefeituras e comunidades locais e o governo federal só assumiu a responsabilidade pela educação universitária. Em alguns casos os governantes estaduais assumiram os encargos, como em São Paulo, para grande satisfação e conforto dos prefeitos, mas com prejuízos para a educação.

Por exemplo, o enorme número de professores da rede publica estadual é uma das razoes pelas quais os salários dos professore são baixos, apesar de que em um número enorme de municípios os prefeitos poderiam pagá-los melhor. O que é necessário, portanto, é um grande movimento para municipalizar o ensino básico, como já fizeram alguns Estados do Sul como Santa Catarina. Opõem-se a essa política os prefeitos que aplicam suas verbas em pré-escola ou em áreas que não são da educação e as entidades sindicais. Ambos estão equivocados, com uma visão a curtíssimo prazo que é, no fundo, prejudicial a eles próprios.

Mais leis e mais medidas coercitivas poderão até ajudar, como a emenda à Constituição proposta pelo ministro da Educação, mas seria mais eficaz mobilizar a sociedade para exigir nos seus municípios maior atenção à educação que o autoritarismo do Estado Novo desmobilizou.

Caberia aqui ao presidente da República – que deseja marcar o seu governo como sinalizando o fim desse período – liderar esse movimento e aos próprios partidos políticos. Só assim seriam arrastados para ele governadores que tivessem a coragem de tomar medidas, aparentemente impopulares, enfrentando o corporativismo de prefeitos e entidades sindicais visando atender aos reais interesses da população.

*José Goldemberg foi reitor da USP e ministro da Educação.

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