‘As pessoas começam a se incomodar quando já é tarde’
Anne Applebaum, autora de ‘O Crepúsculo da Democracia’
O Estado de S. Paulo, 4 Jul 2021 – Rodrigo Turrer
A americana Anne Applebaum, de 56 anos, foi uma das primeiras intelectuais a alertar para a radicalização de parte dos conservadores da Europa e para os perigos da desinformação. Como jornalista, editora das revistas The Economist e The Spectator, tratou de ambos os temas e seus efeitos na democracia liberal e no estado de direito. No livro O Crepúsculo da Democracia (Record), ela narra a adesão de intelectuais às ideias autoritárias. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.
- Em seu livro, a senhora fala do perigo das “mentiras médias e das mentiras grandes”. O que quer dizer com isso?
Eu me refiro às teorias da conspiração. Hoje em dia, para minar a fé na democracia e nos seus sistemas políticos, os líderes não precisam mais de um aparato ideológico completo. Não precisam de marxismo, fascismo. Precisam apenas de uma história ou de um pedaço de desinformação. Uma das razões para Donald Trump se tornar visível politicamente foi sua defesa da tese de que Barack Obama não poderia ser presidente dos EUA porque nascera fora do país. Não era verdade, mas serviu ao seu propósito de minar a confiança na legitimidade do processo. Afinal, se Obama não podia ser presidente, muitos estavam mentindo: o Congresso, a Suprema Corte, o FBI, a CIA. Ele continuou a fazer isso, promovendo a ideia que ganhou a eleição. Mas não há uma ideologia ou um pacote ideológico completo, não há uma teoria econômica para dar sustentação, ou uma visão de futuro, são apenas mentiras insidiosas fabricadas para envenenar as pessoas contra a política. Esse é cada vez mais o jeito com que autocratas eleitos democraticamente vêm tentando sistematicamente minar o sistema político e a democracia para permanecer no poder.
- A alegação de fraude eleitoral, que tem se repetido mundo afora por líderes derrotados, também é parte desse processo?
Com certeza. Trump deu o pontapé inicial nessa tendência. É um exemplo perfeito de como ideias e ações se espalham como rastilho de pólvora ao redor do mundo. O grande perigo é que muitos dos apoiadores desses líderes que se apegam a alegações de fraude eleitoral vão acreditar neles e vão ter cada vez menos fé nos processos eleitorais no futuro. Essa é a parte mais fundamental de todo o processo democrático: que as pessoas tenham fé na sua legalidade e veracidade. Porque a democracia é um sistema político altamente improvável e frágil. Quando você ganha, precisa preservar todos os elementos do sistema: a imprensa, os tribunais independentes, os processos eleitorais para permitir que seu opositor tenha as mesmas chances na próxima eleição.
- É possível evitar tal processo?
A melhor solução é não eleger um autocrata. Não eleja uma pessoa que esteja concorrendo a um cargo executivo atacando o sistema político, atacando o Judiciário, atacando a mídia. Se eleger uma pessoa assim, que não respeita ou não quer preservar o sistema, você rapidamente vai perder a democracia. Quando isso não é possível, há uma série de outras armas: associações civis, protestos, ações judiciais. Nos EUA, por exemplo, em Estados republicanos que estão tentando limitar os direitos de voto, pessoas levantaram dinheiro e contrataram advogados para mover ações e tentar evitar esse processo de deterioração.
- A desinformação é a maior ameaça atual à democracia?
Ela é uma das mais importantes. Há outros desafios também, mas a desinformação tem um papel central nesse processo. Porque a democracia é um sistema no qual as pessoas têm argumentações racionais e tentam convencer umas às outras da validade de seus argumentos e visões. Se você não consegue ter discussões racionais porque ninguém acredita em fatos consolidados e ninguémconcorda sobre o que aconteceu no passado, fica difícil saber como manter um sistema que nasceu na era do iluminismo, com base em conversas racionais e argumentações lógicas. Estamos entrando em um período pós-iluminista, em que as pessoas não acreditam mais em argumentos, fatos e informações, e passam a votar com base em instintos irracionais. A quantidade de desinformação e a quantidade de informação, em geral, faz as pessoas ficarem cínicas. Elas são esmagadas pela quantidade de informações que recebem todos os dias e tendem a não acreditar em nada, o que leva a um niilismo, a um cinismo, muito destrutivos.
- Em seu livro, a senhora constata que muitos intelectuais mudam sua visão para apoiar autocratas. Por que isso acontece?
Sempre houve intelectuais que apoiam ou se aliam a líderes autoritários. E a atração que intelectuais têm pelo poder, em particular pelo poder absoluto, não é novidade. Para mim, dado o triunfante sentimento que a intelligentsia nutriu pelas democracias liberais por quase 20 anos, é surpreendente ver pessoas que apoiaram causas democráticas e o fim de regimes autoritários de esquerda mudarem suas posições. As razões variam, mas um traço de união é a decepção. Na Polônia, por exemplo, onde eu moro parte do ano, muitos intelectuais que apoiam o PiS se decepcionaram com a maneira como as coisas aconteceram depois de 1989. Nos EUA também, há uma decepção latente. Eles veem que as coisas não estão indo na direção que gostariam em suas carreiras e veem uma oportunidade ao se aliarem a um líder radical.
- Esse descontentamento não é apenas entre intelectuais, certo?
Não. As pessoas estão profundamente insatisfeitas com a democracia. Na maioria das democracias liberais, as pessoas passaram a achar que seus líderes, de quem esperam mudanças, não detêm o controle do governo. Se a situação é essa, por que não cogitar que uma liderança centralizada e autoritária possa fazer o que os políticos não conseguem? O desapontamento com a democracia ainda está vivo nos EUA e em muitos outros países com eleições livres. E as ideias autoritárias se alimentam exatamente dessa insatisfação e da revolta das pessoas com as dramáticas mudanças sociais e demográficas das últimas décadas.
- Quando é possível perceber que líderes tentam se agarrar ao poder e erodir a democracia?
Para algumas pessoas é muito fácil ver esse movimento acontecer, outras preferem não acreditar, fingir que nada está acontecendo, ou não aceitar mesmo que seja possível acontecer. Normalmente, as pessoas começam a se incomodar quando é tarde demais. Quando elas começam a ser afetadas diretamente pela falta de imparcialidade da Justiça, ou quando percebem que seus negócios não vão funcionar livremente em um Estado onde um único partido ou um único líder concentra todo o poder e não há mais liberdade de pensamento. Esse é o perigo dessa decadência democrática: ela acontece em passos pequenos e em vários estágios. Eu vivo parte do tempo na Polônia, onde houve um assalto ao Judiciário, que foi totalmente reformulado, com a reposição de juízes que tinham uma visão contrária à ideologia do governo atual. Mas o PiS nem sempre foi radical e extremista. Ele era um partido conservador normal. Mas, ao assumir o poder, começou a alterar o sistema. Assumiu o controle da TV estatal, dominou o Tribunal Constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar no funcionamento da Justiça. Por isso, é fundamental ter uma população educada para entender porque é tão importante haver um estado de direito funcional, com instituições independentes. Quando ninguém percebe a importância disso, é quando você começa a perder a democracia.
* Anne Applebaum, jornalista e escritora, recebeu o Prêmio Pulitzer por seu livro ‘Gulag: Uma História’. Escreveu vários livros, entre eles ‘Fome Vermelha’. Atualmente edita a revista ‘The Economist’.
ARTIGO765