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Bancos Centrais adotam o arsenal dos criptoativos

CBDCs não são descentralizadas, privadas ou anônimas – características dos criptoativos

Por Lucas Caminha, Valor Econômico, 22/07/2021

Há algumas semanas, um meme foi publicado no Instagram por página de notório reconhecimento no meio jurídico: “Decaffeinated coffee. Non-alcoholic beer. Centralbank digital currency”. Mas o que é uma central bank digital currency – uma CBDC?

Em linhas gerais, trata-se de uma nova espécie de representação de moeda emitida por um banco central, cumprindo assim as três clássicas funções de reserva de valor, unidade de conta e meio de troca. No entanto, essa moeda é emitida com bases digitais – via blockchain ou tecnologia similar -, e é diferente do depósito bancário (moeda detida em conta junto a instituição bancária), das reservas bancárias (moeda detida por instituições financeiras em conta-reserva junto aos bancos centrais) e da moeda eletrônica (moeda detida em conta pré-paga junto a instituição de pagamento não-bancária).

Ainda, assim como um café descafeinado e uma cerveja sem álcool não contêm as principais características de suas contrapartes, as CBDCs não são descentralizadas, privadas ou anônimas – características essas que marcam os criptoativos (liderados pelo Bitcoin, Ethereum e outros).

Além de ser isso tudo, a CBDC também pode ser considerada um contra-ataque. Um contra-ataque dos bancos centrais frente ao avanço dos criptoativos enquanto possíveis competidores privados no campo financeiro. Afinal, há algo a ser dito do ponto de vista estratégico sobre recorrer às mesmas armas usadas por um inimigo para se vencer uma guerra; e adaptar-se para não sucumbir frente a novos tempos. Há algo a ser dito sobre a CBDC.

Aqui, vale dar um passo atrás e lembrar que é através do controle sobre a moeda que os bancos centrais conseguem realizar política monetária (p.ex. manter a estabilidade dos preços). Sem efetivo controle sobre a moeda, as funções de um banco central estariam comprometidas. Pois bem – em 2019, quando o Facebook anunciou o lançamento de sua moeda digital Libra, os bancos centrais se assustaram com o risco de as moedas fiduciárias tradicionais serem substituídas por uma moeda digital privada, anônima, e patrocinada por uma bigtech com mais de dois bilhões de usuários ao redor do mundo.

Após colocarem um freio na proposta do Facebook (que foi diluída e poderá ou não ver a luz do dia sob o novo nome de “Diem”), os reguladores passaram a tecer planos para emitir suas próprias moedas digitais – em uma única tacada, eles potencialmente conservam o poder de realizar política monetária e alcançam as diversas vantagens dos ativos digitais (listadas adiante). Há menos de um ano, China e Bahamas lançaram suas próprias CBDCs ao público. Em 2021, já se fala nas bases de um dólar digital (Fedcoin) e de um euro digital. Já há algumas semanas, o Banco Central do Brasil (“BC”) publicou as guidelines da sua própria CBDC – o Real Digital, resultado de grupo de trabalho interdisciplinar do regulador -, e a iniciativa promete florescer em alguns poucos anos.

Naturalmente, não é só para manter as rédeas da economia que o Real Digital  e demais CBDCs estão tomando forma. Em manifestações recentes, tanto o Bank for International Settlements quanto o próprio BC apontaram para uma série de benefícios inerentes: 1- estímulo a novas tecnologias e modelos de negócio (p.ex. smart contracts, internet das coisas e dinheiro programável); 2- aprimoramentos na prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo (PLDFT) e a ilícitos  no geral; 3- acréscimo de mais um meio de pagamento à disposição do público, online e offline; 4- facilitação/barateamento de transferências internacionais (especialmente através de CBDCs interoperáveis); 5- redução do custo de circulação do dinheiro em espécie; 6- estímulo à inclusão financeira (ainda que esse ponto também esbarre em questões mais profundas/estruturais, como acesso à internet e a energia elétrica); e 7- facilitação de remessas a regiões remotas.

As vantagens acima parecem (e são) bem atraentes. Dito isso, alguns críticos à CBDC vêm apontando risco de grande parte do público substituir suas contas de depósito em instituições financeiras por contas em CBDC, reduzindo o montante que tais instituições poderão canalizar para operações de crédito (problema que pode ser mitigado pelo Real Digital, dado que será custodiado/distribuído apenas por instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro), e risco de redução da autonomia/privacidade do cidadão frente ao surveillance state.

Para alguns céticos, apesar de haver contrapontos a essas críticas, elas já seriam motivação para dar um passo atrás e reavaliar a real necessidade da CBDC no Brasil. Em Bahamas, a motivação alegada para emitir os chamados sand dollars é promover inclusão financeira. Na China, almeja-se com os yuans digitais implantar um sistema de pagamentos que não seja controlado pelo duopólio Alibaba e Tencent (entre outros motivos acessórios).

Dito isso, qual justificativa o Brasil teria para emitir o Real Digital? A cada dia que passa, mais instituições oferecem contas digitais, cartões de crédito, empréstimos, seguros e até produtos não-financeiros ao atacado e ao varejo (ganhos de uma concorrência cada vez mais intensa). O Pix se tornou um sucesso absoluto, colocado recentemente em estudo do BC como arranjo de pagamentos instantâneos com maior adesão no mundo inteiro. Considerando tamanhos avanços sociais – fundados em tecnologia e medidas regulatórias -, qual problema real endereçado pela CBDC brasileira que já não está sendo atacado pela atual revolução no sistema financeiro nacional? Qual das vantagens elencadas acima não poderia ser atingida pela continuidade dos avanços que já temos hoje?

Não há resposta clara, mas fato é que o BC já está trabalhando para adicionar o Real Digital à mesa nos próximos anos, e que ele chegará junto com outras CBDCs de cada vez mais países para balançar os modelos de negócios já existentes nos sistemas financeiros ao redor do mundo.

Lucas Caminha é coordenador Societário do Banco BOCOM BBM, mestre em Direito Empresarial pela UERJ e membro da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/RJ

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