Bolsonaro flerta com o mesmo perigo dos EUA, diz Delfim Netto
Para o ex-ministro, as instituições do País estão hoje ‘muito mais sólidas do que eram no passado’; mas ele defende mudanças na Constituição
Entrevista com Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento
Sonia Racy, O Estado de S.Paulo – 08 de janeiro de 2021
Diante das já históricas cenas de radicais fiéis a Donald Trump – muitos deles armados – invadindo o Congresso americano, anteontem, o ex-ministro Delfim Netto* faz uma ponte com o Brasil e chega a uma constatação: “Tristemente, o nosso (presidente Jair) Bolsonaro flerta com esse mesmo perigo”.
Para o economista, o autoritarismo “é o comportamento natural” do presidente americano. Mas no Brasil ele vê o STF e as Forças Armadas como defensores da Constituição. E, analisando o atual momento brasileiro, percebe “uma simbiose” entre o autoritarismo do presidente e o liberalismo de seu ministro da Economia, Paulo Guedes – e descarta os comentários de que Guedes poderia, aí pela frente, vir a deixar o governo.
Outro de seus alvos, nesta entrevista para o “Projeto Cenários”, é a Constituição brasileira. Delfim costuma dizer que Bolsonaro “só administra 6% do Orçamento. Simplesmente, porque os outros 94% já foram destinados obrigatoriamente, pelos constituintes de 1987/88 – inclusive ele, então deputado eleito por São Paulo”. “Esse é o grande drama do País, que precisa mudar”, adverte. Destacando a atual confusão entre os Poderes, ele sugere ao eleitor brasileiro: “Vote em quem prometer que vai mudar a Constituição”. A seguir, os principais trechos da conversa.
Para começar, gostaria de saber como vê o surpreendente ataque à democracia americana, anteontem em Washington. Quais conclusões o sr. tira do episódio?
O que aconteceu anteontem põe em risco mais de 200 anos do melhor regime político que o homem encontrou para acomodar a sua liberdade com a dos outros. O (presidente Donald) Trump, a exemplo de um grande número de políticos, nunca teve qualquer respeito pelas instituições democráticas. O autoritarismo é o seu comportamento natural. Tristemente, o nosso (presidente) Bolsonaro flerta com o mesmo perigo.
No Brasil, o cenário de 2021 já se mostra desafiador, com problemas como a vacina, o desemprego, um vermelho gigantesco nas contas. Acha que um dia essa pandemia vai passar?
O que eu acho é que nós estamos perdendo o sentido histórico. Esta não é a primeira pandemia nem será a última pandemia. Essas zoonoses são conhecidas, você vai ao Google e descobre umas 170 coisas como essa, umas mais graves, outras menos. Mas vai passar, o quadro vai mudar com a vacina.
Então, o sr. acredita que um dia voltaremos ao velho normal?
O mundo nunca mais vai voltar a ser o mesmo porque ele está mudando todo dia. Mas, no geral, me parece que o Estado brasileiro se comportou bem nessa questão da covid-19. Quando veio uma queda brutal da demanda e da oferta, nos assustamos, imaginamos que o PIB ia cair uns 9% ou 10%. Entretanto, vamos terminar o ano de 2020 com uma queda em torno de 4,5%. Se comparar o Brasil com o resto do mundo, isso é um grande sucesso. O problema é saber como vamos sair disso.
Os EUA derramaram um volume gigante de dinheiro na economia, mas ela não reagiu como se esperava. Aqui no Brasil foi parecido, em menor proporção?
Não foi só em menor proporção, não. Nós descobrimos 40 milhões de pessoas que não existiam. Veja, eu sempre fui muito cedo para o escritório, 5 e meia ou 6 da manhã, e subindo a Avenida Rebouças eu via uma senhora, com uma barraquinha no poste. O trabalhador parava ali para se alimentar. Essa pessoa não existia para o Estado. Não tinha registro, não tinha conta bancária, se sustentava do próprio serviço. Quando veio a pandemia e ela recebeu R$ 600, o que fez? Foi comprar coisas e, em suma, movimentar o comércio.
E a estabilidade da economia? Acha que um dia Paulo Guedes pode pegar o boné e ir embora? Ou, então, Bolsonaro vai mandá-lo para casa?
Não me parece que essa seja a forma de agir do Paulo. Ele é briguento, tem ideias fixas. Mas há uma simbiose, o autoritarismo do Bolsonaro está misturado com o liberalismo do Paulo. Eles exprimem a mesma coisa de modos diferentes. O Bolsonaro não quer acabar com a democracia, ele é cheio de preconceitos identitários e submetido a uma identidade religiosa. Mas acho que as pessoas subestimam a esperteza e inteligência do presidente. Ele dança conforme a música que ele constrói: sobe, desce, diz sim, diz não. E o resultado é uma sociedade perplexa, que não sabe o que ele quer.
Com os juros no mundo tão baixos como estão, e capital sobrando para tudo que é lado, o que vai acontecer?
Acho que vivemos uma história antiga, e a covid-19 só está acrescentando uma dificuldade a mais. O maior problema que temos não é o vírus, é a atividade do homem sacrificando a natureza da qual ele é parte. Sim, o homem é parte da natureza, mas teve um ataque de grandeza e achou que tinha se separado dela. Foi abusando e, como resultado das nossas ações nos últimos 150 anos, produzimos o aquecimento global. Agora, a natureza está se defendendo disso.
A economia mundial teve uma fase industrial, e agora ainda surfamos a era financeira. O que é que virá a seguir?
Tivemos um desenvolvimento cujo resultado foi um aumento dramático na concentração de riqueza – e, portanto, na desigualdade. A covid-19 veio mostrar isso com toda clareza. A vida se transformou numa coisa muito dura. Vamos pensar um pouco: numa sociedade civilizada, o importante é a igualdade de oportunidades. Não há meritocracia se não houver igualdade de oportunidades. Diria que, sem essa igualdade, o liberalismo é uma fraude.
Mas como igualar seres humanos que não são iguais?
Você não pode igualar seres humanos. Em um grupo sempre aparece uma liderança, um macho alfa que assume o controle. Mas a lei pode pôr as coisas em ordem, nos igualar – isso se chama civilização. O Estado de Direito é exatamente isso. Nele, todos nós estamos submetidos a um acordo que fizemos e que se chama Constituição.
Mas por que tanta gente culpa a Constituição por tudo o que há de errado?
Eu posso dizer, porque fui constituinte. O fato é que, em 1987, foram eleitas pessoas que tinham sido muito amoladas pelo regime autoritário. Esse pessoal foi tomado de uma onipotência extraordinária e fez uma Constituição que impedia o Estado de impedir as pessoas. Nos metemos em tudo o que foi possível. Resolvemos o que seria aplicado em saúde, em educação, na segurança…
Engessou.
Hoje, eu brinco dizendo que o Bolsonaro, com toda sua arrogância, só administra 6% do Orçamento. Os outros 94% são administrados por aqueles deputados que se reuniram em 1987. Esse é o grande drama, que precisa mudar. Porque tiramos de um presidente a capacidade de fazer escolhas de acordo com o momento.
O Congresso reabre no início de fevereiro e a reforma tributária é um de seus primeiros desafios. O que acha do texto que está lá para ser votado?
Não satisfaz. Reforma tributária não é coisa só para economista. Reformas tributárias são sempre precedidas de um grupo de tributaristas e economistas reconhecidos. Eles preparam um projeto que vai ao Congresso e este o ajusta às condições impostas pela política. O projeto que está aí é bom, mas tem problemas. O que está no Senado também tem condições razoáveis. Mas nada foi submetido a uma análise cuidadosa, para se ter um programa completo. Não é só a tributação do consumo, é a do patrimônio, a das rendas, da herança… Senão, não funciona. Tem outra coisa: não há sistema tributário no mundo que resista a mais de 20 anos. O mundo muda com rapidez e esse sistema precisa ir se ajustando.
Fala-se muito em tributação de herança, de grandes fortunas. Isso daria mesmo mais recursos para a União?
Não acredito que possamos aumentar a carga tributária. Se você aumentar, vai diminuir a produtividade do sistema. Nós já aumentamos demais.
Tem gente dizendo que a reforma administrativa é muito mais urgente que a tributária. O sr. concorda?
Quem diz isso está absolutamente correto. Porque a reforma administrativa, do modo como está proposta agora, alcança os três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário. Veja, a Constituição diz que esses três são independentes e harmônicos. Mas, na prática, cada um quer arrancar um pedaço do outro. Quem devia regular isso seria o Supremo – mas hoje há uma imensa judicialização de tudo. E essa reforma administrativa pela primeira vez atinge os três Poderes.
O Supremo poderia fazer algo para mudar tudo isso?
O STF deveria entender que ele só é Supremo quando decide em conjunto, no plenário. Mas, de repente, ele deixou de ser Supremo. Cada um dos onze (ministros) achou que pode ser Supremo sozinho. E assim pode pensar: ‘Eu dou um voto, tiro um governador…’.
Tem uma receita para sair disso?
Estou convencido de que seria necessário estabelecer um limite no STF. Acho que ninguém pode ficar lá, digamos, mais que 10 anos. Mas isso exige mudança na Constituição. Então, eu hoje diria a um eleitor: ‘Vote em quem prometer que vai mudar a Constituição’.
No quadro atual, temos visto muita incoerência, à esquerda e à direita. É um fenômeno brasileiro ou mundial?
Estou absolutamente convencido de que direita e esquerda são sinais de trânsito. A esquerda diz: ‘Eu sou a favor da distribuição de renda’. Mas, alguém é contra? E a direita diz: ‘Eu sou a favor da ordem’. Quem é contra? Então, eu acho que as instituições estão fortes. E que é uma ilusão achar que alguém vai empurrar o Brasil rumo a um regime autoritário.
O que o leva a pensar assim?
Primeiro, porque o Supremo está aí, ele é o garantidor dessa liberdade. Segundo, as Forças Armadas, profissionais e independentes da política, vão obedecer às decisões da Constituição. General reformado é civil desempregado, na reserva não tem poder nenhum. Se você reunir mil aposentados do INSS e mais mil generais também aposentados, eles têm o mesmo poder. Poder nenhum de mudar a realidade. As instituições são hoje muito mais sólidas do que eram no passado.
*PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, MINISTRO DA FAZENDA (1967/74), DA AGRICULTURA (1979) E DO PLANEJAMENTO (1979/85), EMBAIXADOR NA FRANÇA (1975/78) E POLÍTICO FILIADO AO PP.
ARTIGO195