‘Centrismo populista’ cresce em Washington
Apesar da polarização política, de alguma forma, bipartidarismo se tornou algo normal nos EUA
Por The New York Times, David Leonhardt, tradução de Guilherme Russo, O Estado de S. Paulo. 30/05/2024
O fato mais debatido a respeito da política dos EUA atualmente pode ser a profunda polarização do país. O Partido Republicano moveu-se para a direita e, o Democrata para a esquerda. Ambos consideram o outro uma ameaça à sua existência. Uma consequência dessa polarização, afirmam políticos e comentaristas, é o impasse em Washington. Mas em um país que, por isso, deveria ter um governo federal travado, os últimos quatro anos são difíceis de explicar. Na verdade, esse foi um período de bipartidarismo, o mais produtivo em décadas.
Durante a pandemia, democratas e republicanos no Congresso uniram-se para aprovar respostas emergenciais. Sob o presidente Joe Biden, maiorias bipartidárias aprovaram grandes pacotes de infraestrutura de semicondutores, assim como legislações sobre assistência médica a veteranos de guerra, violência com armas de fogo, Correios, sistema de aviação, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, crimes de ódio contra vítimas de origem asiática e processo eleitoral. Em relação ao comércio, o governo Biden manteve algumas das políticas emblemáticas do governo Trump, chegando até a expandi-las.
A tendência continuou ao longo do mês passado, com a aprovação bipartidária das leis para determinar o envio de ajuda para a Ucrânia e outros aliados e forçar a empresa chinesa proprietária do TikTok a vender a rede social. Após a aprovação das legislações, os republicanos de extrema direita tentaram derrubar o presidente da Câmara dos Deputados, Mike Johnson, porque ele não bloqueou sua tramitação – e os democratas votaram para mantêlo no cargo. Deputados de um partido salvarem um presidente da Câmara da outra legenda era algo inédito. Na semana passada, a Casa avançou com outra lei bipartidária, sobre socorro em desastres, usando um procedimento para contornar votos alinhados partidariamente.
Essa enxurrada de bipartidarismo pode ser surpreendente, mas não é acidental. E tem dependido do surgimento de uma nova forma de centrismo.
SEM MODERAÇÃO. A própria noção de centrismo é uma maldição para progressistas e conservadores, invocando uma moderação sentimental. Mas o novo centrismo nem sempre é tão moderado. Forçar a venda de um popular aplicativo de rede social não é exatamente sutil, nem confrontar China e Rússia. As leis de gastos para reconstruir a infraestrutura dos EUA e fortalecer sua indústria doméstica de semicondutores são políticas econômicas ambiciosas.
Uma qualidade que define o novo centrismo é a medida que ele se diferencia do centrismo que orientou Washington nos mais de 30 anos passados após o fim da Guerra Fria, a partir dos anos 90. Aquele centrismo – alternadamente chamado de Consenso de Washington ou neoliberalismo – tinha como base a ideia de que a economia de mercado tinha triunfado. Ao diminuir barreiras comerciais e acabar com o Estado grande, os EUA criariam prosperidade para seu próprio povo ao mesmo tempo que moldariam o mundo à sua própria imagem, espalhando democracia para China, Rússia e outros.
Não funcionou. Nos EUA, a renda e a riqueza cresceram lentamente, a não ser para os mais ricos, enquanto a expectativa de vida hoje é mais baixa do que em qualquer outro país de renda elevada. Apesar de, juntamente com outros países pobres no passado, a China ter ficado mais rica, ela é menos livre – e cada vez mais assertiva.
O novo centrismo é uma resposta a esses desdobramentos. Um reconhecimento que o neoliberalismo não entregou. A noção de que a estratégia antiga geraria prosperidade, conforme afirmou Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional do presidente Biden: “Foi uma promessa feita mas não cumprida”. Em seu lugar, uma nova visão de mundo emergiu. E ela pode ser chamada de neopopulismo.
Tanto democratas quanto republicanos ficaram gradualmente céticos em relação ao livre comércio. Os democratas e parte dos republicanos também apoiaram a política industrial, com a qual o governo tenta solucionar as deficiências do mercado. As leis de infraestrutura e de semicondutores são exemplos. Esse tipo de política passou uma sensação maior de consistência nas presidências de Dwight Eisenhower ou Franklin Roosevelt do que nos mandatos de Ronald Reagan ou Bill Clinton.
O termo neopopulismo cabe em parte porque pesquisas mostram que essas novas políticas são mais populares do que os princípios do Consenso de Washington jamais foram. Décadas atrás, políticos de ambos os partidos pressionavam pela liberalização do comércio global apesar do ceticismo do público. Em retrospecto, muitos políticos e até alguns economistas acreditam que os americanos estavam corretos em seu ceticismo.
“Há uma sensação tanto na esquerda quanto na direita, assim como entre independentes, de que a economia não tem funcionado em muitos lugares”, disse o deputado progressista Ro Khanna, cuja circunscrição eleitoral abrange o Vale do Silício. Daniel DiSalvo, pesquisador sênior do centro de análise conservador Manhattan Institute, afirmou que os republicanos “despertaram para o fato de que as políticas neoliberais não funcionam muito bem para uma grande coalizão de trabalhadores”.
ATORES. Assim como no século 20, outro fator importante é uma rivalidade internacional. Naquela época, era a Guerra Fria. Agora, é a batalha contra uma aliança de autocracias liderada pela China que inclui Rússia, Coreia do Norte, Irã e grupos como o Hamas.
“A China é realmente uma força unificadora”, disse a senadora Susan Collins, republicana do Maine. O senador John Fetterman, democrata da Pensilvânia, comparou o surgimento da inteligência artificial ao lançamento do satélite Sputnik, em 1957, pela União Soviética, que ocasionou uma lei bipartidária sobre educação e pesquisa científica. Temores sobre a IA, acrescentou Fetterman, possibilitaram a aprovação da lei dos chips. “Conseguimos nos unir mais quando percebemos risco ao modo de vida americano”, afirmou Fetterman. “De que lado você está? Da democracia ou de Putin, do Hamas e da China?”
Certamente o novo centrismo também tem limites. O Partido Republicano tem uma grande ala isolacionista, e alguns progressistas duvidam que o poder americano seja uma coisa boa. A Suprema Corte, dominada por magistrados indicados por republicanos, apoia em grande medida a economia liberal. Mas sobre algumas questões polarizadoras, como o aborto, a perspectiva de leis federais é exígua.
E há também Donald Trump, que de certa maneira é parte do novo consenso, mas também é hostil a tradições democráticas básicas, incluindo um Judiciário independente e a transferência pacífica do poder. Se Trump virar presidente outra vez, a agenda que ele promete é extrema o suficiente para esfriar a cooperação bipartidária.
Ainda assim, as forças que criaram o neopopulismo dificilmente desaparecerão, pois refletem tendências econômicas e internacionais duradouras.
“Não quero dar a parecer que está tudo bem, porque claramente não está”, afirmou Collins, um defensor de longa data do bipartidarismo. “Mas não acho que o pêndulo esteja começando a regredir.”
A polarização partidária é um fenômeno que ocorre há décadas e tem muitas causas subjacentes. Os dois maiores partidos dos EUA eram ideologicamente incoerentes em meados do século 20, com democratas conservadores no Sul e republicanos progressistas no Norte. Uma vez que os partidos se definiram mais racionalmente, o destino do bipartidarismo ficou mais difícil.
Personalidades também tiveram seu papel. Republicanos afirmam que a rejeição do Senado à indicação de Robert Bork à Suprema Corte, em 1987, apesar de suas qualificações legais, transformou Washington. Democratas culpam Newt Gingrich, presidente da Câmara nos anos 90, por transformar o Congresso numa instituição menos colegiada.
O ápice da era partidária ocorreu em 2009, pouco após a eleição de Barack Obama à presidência. Obama tinha ascendido à proeminência como um defensor de concessões mútuas e esperava aprovar leis bipartidárias sobre assistência de saúde e energia limpa. Mas Mitch McConnell, então líder da minoria republicana no Senado, acreditava que permitir a Obama sancionar essas leis fortaleceria o democrata e persuadiu os republicanos a se opor ao então presidente em quase todas as suas políticas maiores. “Ou é bipartidário ou não é”, disse McConnell, na época.
O senador e seus aliados também se opunham a princípios da agenda democrata. Eles eram republicanos liberais, que tendiam a se opor à intervenção do governo na economia, o que frequentemente resultava em dificuldades para alcançar denominadores comuns em políticas.
A ascensão de Trump alterou essa dinâmica. Ele venceu as primárias republicanas em 2016 afastando elementos centrais do ‘reaganismo’. Pode ser difícil pensar em Trump como um centrista em razão de seus comentários grotescos. Mas ele moveu seu partido ao centro em relação a grandes questões econômicas. Trump criticou o livre comércio e elogiou programas como o Medicare.
Para o assombro de outros republicanos, sua rejeição à economia de livre mercado não o prejudicou politicamente; ao contrário, o ajudou a vencer as primárias. E na eleição geral ele conquistou eleitores de classe trabalhadora que tinham apoiado Obama anteriormente. A vitória de Trump fez ambos os partidos reconhecer que o Consenso de Washington era menos popular do que eles acreditavam.
O próprio Trump continua inconsistente em relação a muitas questões. Mesmo enquanto discursava como um presidente populista, ele instalou secretários de gabinete pró desregulação, e sua legislação doméstica mais emblemática foi um corte de impostos de quase US$ 2 trilhões que beneficiou os ricos. Se for eleito novamente, ele promete ampliálo. Recentemente, Trump retirou seu apoio à venda forçada do TikTok pouco após conversar com um doador de campanha republicano cuja firma tem participação na empresamãe da rede social.
Não obstante, a heresia de Trump em relação ao comércio e à intervenção do governo facilitou para outros republicanos moderar suas próprias posições. O cientista político Daniel Schlozman, da Universidade Johns Hopkins, nota que o Partido Republicano de Trump exige lealdade em alguns tópicos, como suas falsas alegações sobre fraude eleitoral, mas é menos homogêneo sobre outros temas.
O desdobramento final que possibilitou o neopopulismo bipartidário é a presidência de Biden. O presidente se define há muito como um democrata mais ligado à classe trabalhadora do que outros companheiros de partido. Ele também priorizou aproximar-se ideologicamente do centro em seu partido – tornando-se líder da legenda em 2020, quando muitos especialistas em políticas se amargavam com o neoliberalismo. E Biden tem mantido uma fé quase teológica no bipartidarismo, oriunda de uma carreira no Senado iniciada em 1973 – outra era. Quando ele entrou na Casa Branca prometendo aprovar leis bipartidárias, muitos analistas políticos escarneceram. O país, afirmavam eles, estava polarizado demais.
Mas Biden persistiu, trabalhando frequentemente nos bastidores. A chance de uma lei ser aprovada aumenta, acredita o presidente, se ele conseguir afastar sua imagem da legislação. “Ele foi paciente e prestativo tanto em recuar quanto em avançar conforme considerou necessário”, afirmou a senadora Amy Klobuchar, democrata de Minnesota. Sejam quais forem as fraquezas de Biden como presidente, seu registro em sancionar leis bipartidárias excede o de qualquer antecessor recente. Na legislação de infraestrutura, por exemplo, 19 dos 50 senadores republicanos votaram a favor, incluindo McConnell.
Como sublinham essas conquistas, a maioria dos republicanos no Congresso ainda não aderiu à agenda neopopulista. As maiorias bipartidárias tendem a incluir quase todos os democratas e uma minoria de republicanos. “Enquanto eles não estiverem prontos para dizer não ao corte de impostos de US$ 2 trilhões, eu não os considerarei populistas econômicos”, disse a senadora Elizabeth Warren, democrata de Massachusetts, referindo-se ao corte de impostos original.
A própria Warren trabalhou com o senador Josh Hawley, republicano do Missouri, em um projeto de lei que forçaria as empresas aéreas americanas a reembolsar passageiros por voos cancelados e com o senador Roger Marshall, republicano do Kansas, numa legislação para regular as criptomoedas.
FUSÃO. Outro momento neopopulista ocorreu em fevereiro, quando o senador J.D. Vance, republicano de Ohio, elogiou Lina Khan, a ativista antimonopólio que Biden indicou para presidir a Comissão Federal de Comércio, pelo “ótimo trabalho”. Vance é um republicano de direita, que Trump considera ter como vice na chapa, enquanto Khan está entre os membros mais progressistas do governo Biden. Ainda assim, Vance escolheu Khan como a única pessoa no governo que ele está disposto a elogiar.
Em parte, essa fusão entre direita e esquerda é um sinal de que os políticos estão reagindo racionalmente aos pontos de vista dos eleitores. Muitas elites políticas – incluindo doadores de campanha, especialistas de institutos de análise e jornalistas – interpretaram incorretamente a opinião pública há muito tempo. Suas preocupações não revolvem as visões socialmente liberais e fiscalmente conservadoras que muitas elites sustentam. A opinião pública tende a seguir caminhos opostos.
Os americanos pendem para a esquerda em relação a políticas econômicas. Pesquisas mostram que eles apoiam restrições comerciais, impostos mais altos para os ricos e uma rede de seguridade social forte. A história é diferente em temas sociais (mas não tanto à extrema direita, como no posicionamento do Partido Republicano em relação ao aborto).
AUTORITARISMO. Há elementos do populismo que deixam muitos desconfortáveis, evidentemente. O populismo pode descambar para o autoritarismo, conforme Trump demonstra com frequência. Se ele retornar para a Casa Branca, seu segundo mandato poderá ser tão caótico e radical que impedirá a produtividade bipartidária dos anos recentes. Mas Trump não é a única ameaça ao sistema político americano.
Por décadas, Washington trabalhou em prol de um conjunto de políticas que desagradavam muitos eleitores e não chegaram nem perto de entregar os resultados prometidos. Muitos cidadãos se frustraram. Essa frustração ocasionou o surgimento de um neopopulismo que busca revigorar a economia americana e competir com os rivais globais dos EUA. Por mais polarizado que o país esteja, seus dois partidos ao menos tentam responder a essa realidade – e têm encontrado uma quantidade surpreendente de denominadores comuns.
ARTIGO1140