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Como a China de Xi está virando a cara para o mundo

Líder parece determinado a conter a influência da cultura exterior

O Estado de S. Paulo, 04/03/2022

Vivian Wang – The New York Times – Tradução de Guilherme Russo

Presidente chinês exortou os artistas a adotarem “confiança cultural”, promovendo a arte e a literatura chinesa tradicional

O milagre da China moderna foi construído sobre conexões globais, acreditando que mandar jovens, empresas e futuros líderes absorver o mundo exterior era o caminho de saída da pobreza na direção da potência. Agora, incentivado por essa transformação, o país está contrariando influências e ideias que alimentaram sua ascensão.

Líder mais dominante do país em décadas, Xi Jinping parece determinado a redefinir a relação da China com o mundo, recalibrando o encontro de mentes e culturas para um conflito sem vencedores.

LÍNGUA INGLESA. Autoridades de educação estão impondo restrições sobre a ensino de língua inglesa e exigindo que acadêmicos obtenham permissão para frequentar conferências virtuais internacionais. Agências reguladoras puniram empresas chinesas por arrecadar dinheiro no exterior. Xi exortou artistas a adotar “confiança cultural”, promovendo arte e literatura chinesa tradicional, e alertou contra imitar Hollywood.

E o governo, citando a pandemia de coronavírus, não está mais emitindo livremente a maioria dos passaportes, símbolos físicos do mundo interconectado. As fronteiras estão quase fechadas.

“Não existe mais integração e intercâmbio entre diferentes culturas”, afirmou Zhang Jincan, proprietário do Dusk Dawn Club, uma casa de shows de música ao vivo em Pequim.

Antes da pandemia, o clube era uma instalação que expressava a curiosa e conectada cena musical da cidade. Cidadãos locais se acotovelavam para escutar quintetos poloneses de jazz ou percussionistas argentinos. E expatriados podiam descobrir efêmeras bandas punk chinesas. As apresentações com frequência eram organizadas em parceria com organizações culturais estrangeiras.

Agora, Zhang preocupa-se com a possibilidade de a própria essência de seu clube estar desaparecendo. “Bate tipo uma fadiga estética”, afirmou.

Dificilmente ocorrerá um retorno ao isolacionismo da era de Mao, quando a nação era fechada para o mundo tanto financeiramente quanto culturalmente. A pandemia deixou claro o quanto a economia global depende da China e quanto a China tem se beneficiado (mais informações na página A19). Xi afirma que não tem nenhuma intenção de desvincular seu país de outras economias. “Países de todo o mundo devem promover o verdadeiro multilateralismo”, disse ele no Fórum Econômico Mundial, no mês passado. “Devemos remover barreiras, não erguer muros.”

ARTES. Mas se o governo valoriza os benefícios econômicos da globalização, o mesmo parece não ser verdadeiro em áreas menos tangíveis, como artes, intelectualidade e relações humanas. Esses laços – que tornaram a China não uma mera coadjuvante na economia mundial, mas integrante plena da comunidade internacional – estão sendo perscrutados, restringidos ou rejeitados.

NACIONALISTAS. Qualquer elemento visto como – ou, crescentemente, pichado como – estrangeiro está vulnerável ao ataque de nacionalistas no ambiente online. Celebridades que promovem o vegetarianismo têm sido acusadas de propagar estilos de vida ocidentais.

Até mesmo a Olimpíada de Inverno de Pequim, realizada no mês passado, por definição um dos eventos com mentalidade mais global realizados no mundo, foi conduzida segundo os termos da China: sem espectadores estrangeiros e em desafio a boicotes diplomáticos de alguns países, incluindo os EUA.

Depois que os comunistas tomaram o poder, em 1949, os primeiros americanos a entrar oficialmente na China, décadas depois, foram nove jogadores de tênis de mesa. Os times dos países se conheceram em 1971, no Campeonato Mundial de Tênis de Mesa realizado no Japão, e o governo chinês convidou os americanos para uma visita de uma de semana, na qual eles foram até a Grande Muralha, assistiram a um espetáculo de dança e disputaram partidas.

Um ano depois da “diplomacia do pingue-pongue”, o ex-presidente Richard Nixon fez sua visita histórica à China, abrindo caminho para os dois países restabelecerem relações diplomáticas.

Nas décadas que se seguiram, as conexões globais cada vez mais profundas da China sinalizaram a expansão de suas ambições. Mais de 6,5 milhões de chineses estudaram no exterior entre 1978 e 2019, um número que cresceu a cada ano. Empresas chinesas de tecnologia foram listadas em Wall Street, suas inovações foram copiadas no Vale do Silício. Professores chineses usavam canções de boybands ocidentais no ensino do inglês, que é visto como vital para abrir oportunidades econômicas.

O mundo exterior também estava ávido para saber mais a respeito da China. Entre 2002 e 2018, o número de estudantes estrangeiros na China cresceu quase seis vezes. A Olimpíada de Pequim, em 2008, ajudou

Passaportes. Citando a pandemia de coronavírus, o governo não está mais emitindo livremente a maioria dos passaportes o país a se vender como destino turístico global.

A apreensão persistiu. Deng Xiaoping, o líder que comandou a abertura econômica, alertara de maneira memorável que por uma janela aberta entram tanto o ar fresco quanto as moscas. Mas naqueles tempos inebriantes muitos acreditaram que a China avançava irreversivelmente na direção da abertura.

Xi provou que eles estavam errados. Desde que ele ascendeu ao poder, em 2012, o Partido Comunista Chinês tem restringido a atuação de ONGs estrangeiras, acusando algumas de conspirar contra o país. O partido baniu livros didáticos estrangeiros, enfatizando que é o único ente capaz de guiar a China para a grandeza. A crescente hostilidade dos EUA também levou líderes chineses a uma posição mais defensiva.

ISOLAMENTO. O coronavírus cristalizou essas tendências. Dedicada a erradicar as infecções, a China cancelou praticamente todos os voos internacionais. Os meios de comunicação fixaram sua atenção nos índices de mortes no Ocidente.

Para limitar casos de covid-19 importados, as autoridades afirmaram que não emitiriam nem renovariam mais passaportes, exceto em casos de emergência, trabalho ou estudo no exterior. O número de passaportes emitidos no primeiro semestre de 2021 equivaleu a 2% do número de documentos concedidos no mesmo período de 2019.

Sarah Duan, de 16 anos, solicitou um passaporte em dezembro, após ser aceita numa escola particular de ensino médio em Seattle. Autoridades de imigração de sua província natal, Shanxi, lhe disseram que menores não tinham permissão de deixar o país, afirmou. Duan telefonou para a agência nacional de imigração e ouviu que nenhuma política desse tipo existe no país.

Ainda assim, as autoridades locais rejeitaram sua solicitação, argumentando que a pandemia estava perigosa demais no exterior ou apontando para as tensas relações com os EUA.

EXPORTAÇÕES. Apesar de seus compromissos retóricos, Xi está estreitando o escopo do crescimento econômico ao pedir uma redução na dependência em exportações e manter empresas chinesas mais próximas de casa. Depois que a Didi Chuxing abriu capital na Bolsa de Nova York, no ano passado, sem a bênção de agências reguladoras, o governo chinês anunciou uma investigação contra a empresa de tecnologia e transporte privado. Meses depois, a Didi teve suspensa sua negociação na bolsa.

Apesar de a China querer o dinheiro estrangeiro, está afastando as pessoas que o acompanham. O número de estrangeiros vivendo em Pequim e Xangai caiu em quase um terço na década passada. Mesmo após a China reabrir suas fronteiras, alguns temem que o clima em deterioração manterá longe os estrangeiros. Estereótipos tendem a endurecer fora da China, conforme o país impõe novas restrições sobre influências externas.

No último verão, autoridades de educação impediram escolas online de contratar professores que vivem no exterior, cortando uma fonte popular de ensino de inglês e intercâmbio cultural. Em dezembro, agências reguladoras ordenaram que créditos de programas de TV especifiquem se atores ou integrantes de equipes de produção possuem cidadania estrangeira.

Essas decisões foram formuladas como parte de manobras mais amplas para aliviar a carga de estudos dos estudantes ou domar a desregrada cultura de celebridades na China. Mas as autoridades foram algumas vezes mais explícitas a respeito dos efeitos insidiosos das ideias estrangeiras. Xi denunciou uma devoção cega a produtos ocidentais e exigiu confiança na cultura tradicional, o que ele qualifica como “uma grande questão que se relaciona as ascensões e quedas de fortunas nacionais”.

Alguns afirmam que a ênfase no local é um resultado natural do ascendente status da China. Ainda que filmes americanos já tenham dominado as bilheterias chinesas, as produções locais estão por cima agora. Designers de moda locais, anteriormente qualificados como de segundo nível, cobram os preços mais altos.

Sun Lei, de 24 anos, mudouse para o Reino Unido no último outono para cursar um mestrado. Mas a frouxa abordagem britânica em relação ao vírus gerou nele um apreço mais profundo pela capacidade da China de colocar em prática suas políticas sem a fricção vista em democracias ocidentais.

“A realidade é que o desenvolvimento da China e toda a situação econômica estão em tendência de alta”, afirmou Sun, que pretende retornar ao seu país depois do mestrado. “Isso beneficia meu desenvolvimento pessoal.”

Ainda assim, ele planeja usar uma rede privada virtual para acessar sites bloqueados na China depois que voltar. A crescente classe média chinesa, cada vez mais viajada e fluente na cultura pop global, dificilmente aceitará se retirar totalmente do mundo exterior.

Mesmo vozes improváveis defenderam a ampliação cultural. “A tecnologia garante que o distanciamento cultural se torne impossível”, afirmou o blogueiro Wang Xiaodong, que se descreve como nacionalista e tem mais 6 milhões de seguidores em redes sociais. Wang acompanha avidamente programas de TV americanos.

CERCO. Mas o governo está apertando o cerco contra as VPNs. Quem critica a insularidade chinesa é com frequência censurado ou inundado por vozes nacionalistas. O próprio Wang já foi atacado online por afirmar que a China precisa se envolver com o mundo.

Causticidades virtuais têm consequências reais. No último outono, autoridades da cidade da Dalian, no nordeste do país, fecharam um complexo comercial com temática japonesa duas semanas após sua inauguração, depois de comentaristas online qualificarem o local como uma forma de invasão cultural. No longo prazo, a hostilidade pode colocar em risco a mesma ascensão que os nacionalistas são ávidos em promover.

No ano passado, um conselheiro do governo alertou formalmente a legislatura chinesa que essas restrições podem prejudicar a política externa do país. “O controle excessivo influenciará análises de especialistas em assuntos internacionais e a qualidade de suas recomendações”, escreveu o conselheiro, Jia Qingguo, que também leciona na Universidade de Pequim.

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