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Como a gripe espanhola paralisou São Paulo em 1918

Semelhanças entre o surto iniciado na 1ª Guerra Mundial e a atual pandemia de coronavírus são perturbadoras

José Roberto Walker*, Especial para o Estado – 20 de março de 2020 | 16h00

O mundo estava em guerra havia mais de quatro anos quando as primeiras notícias sobre a gripe espanhola saíram nos jornais de São Paulo, em setembro de 1918. Era outra epidemia que se originava nas trincheiras. Milhões haviam morrido e o horror já não causava espanto.

No Brasil, as preocupações começaram quando a Missão Médica Brasileira, enviada à França para auxiliar nos serviços de socorro aos combatentes, foi atingida pela gripe, assim que o navio fez escala no porto de Dacar. Os membros do grupo saíram do Brasil como heróis e logo se soube que mais de cem haviam sido dizimados em poucos dias. Foi a primeira vez que se ouviu falar em brasileiros mortos por gripe.

As notícias pioraram rapidamente. Em outubro, os jornais anunciaram a erupção da epidemia em Recife, Salvador e Rio. Ela vinha pelos navios e as cidades portuárias eram as primeiras a serem atingidas. Logo a capital se viu tomada pela gripe e os mortos chegaram às centenas.

No meio de outubro a doença finalmente fez a sua aparição em São Paulo. Um time carioca veio para uma partida de futebol e alguns atletas tiveram febre. O jogo foi cancelado, mas a doença imediatamente se propagou. Na quarta-feira, 16 de outubro, os jornais noticiavam a chegada da influenza espanhola. A abordagem era otimista e o Serviço Sanitário previu que a epidemia não causaria grandes danos e que, embora altamente contagiosa, não passava de gripe comum e as mortes eram causadas por males já existentes. Na capa de um dos principais jornais da cidade, apareceu a notícia: “Pinga com limão também cura a influenza”.

A cidade demorou para compreender o que a aguardava. São Paulo havia crescido espetacularmente nos anos anteriores. Em 1890 tinha apenas 64 mil habitantes e em 1918, já havia passado muito dos 500 mil. O progresso era contínuo, havia trabalho para todos e ninguém queria acreditar em más notícias.

A gripe se espalhou rapidamente, o número de infectados aumentou e logo atingiu centenas por dia. No dia 22 de outubro ocorreu a primeira morte. A imprensa exigia providências imediatas. As escolas suspenderam as aulas e o Mappin Stores, a maior loja de departamentos da cidade, anunciou que funcionaria somente até às cinco da tarde. Apesar disso, as mortes se tornaram diárias e, em 25 de outubro, o governo decretou feriado em São Paulo e Santos.

Todos temiam a situação do Rio, onde os mortos já eram milhares. A cidade estava à beira do colapso e jornais falavam em corpos abandonados nas ruas.  Entre os doentes estavam o presidente Venceslau Brás e o presidente eleito, Rodrigues Alves, e discutia-se o adiamento da posse.

Seria assim também em São Paulo? Era a pergunta que todos faziam.

No dia 1 de novembro, os mortos passaram de cem. O Serviço Sanitário pediu que a população não saísse mais de casa e os remédios recomendados eram a vaselina mentolada, gargarejos com água iodada e sal de quinino. Mas ninguém acreditava que fizessem efeito. O que mais assustava era o número de casos novos todos os dias. Era fácil fazer as contas e prever que a mortalidade iria subir.

No entanto, havia muita solidariedade. Empresas e particulares cederam automóveis para o atendimento aos doentes. Os escoteiros organizaram uma tropa especial que fazia entrega de remédios. Clubes e associações montaram hospitais de emergência e o Palestra Itália instalou “um moderno sanatório, com 100 leitos” na rua Líbero Badaró. Em contrapartida, o cemitério da Consolação, permanecia iluminado “com luz elétrica de emergência” e os enterros varavam à noite.

Para os paulistanos a vida se transformara em loteria. Os novos casos chegaram a cinco mil por dia, mais ou menos 1% da população da cidade, e já não havia médicos para todos. Por falta de pessoal, os grandes jornais faziam edições reduzidíssimas. No Estado, até Monteiro Lobato assumiu um posto na redação, para suprir a falta de jornalistas.

A gripe dominou a cidade e quem não foi atingido, teve de cuidar dos doentes. Os enterros foram simplificados ao máximo e muitas vítimas eram levadas ao cemitério amontoadas precariamente em caminhões ou nos bondes que a Light reservou para esse trabalho macabro. A gripe espanhola era a única preocupação e quando a guerra finalmente acabou, em 8 de novembro, a notícia dividiu a primeira página dos jornais com as informações sobre a epidemia.

No auge do surto, em 14 de novembro, morreram 279 pessoas em São Paulo. No dia seguinte, o presidente eleito Rodrigues Alves, doente, não tomou posse e faleceria semanas depois.  A partir do dia 15, os números começaram a declinar e na terceira semana do mês, morreram 905 pessoas e todos viram isso com alívio.

Oswald de Andrade, nas suas memórias, resumiu a situação: “a gripe foi como veio”. A cidade aos poucos recuperou a normalidade. As fábricas voltaram a funcionar e o comércio reabriu as portas. Ao final de tudo, os mortos em São Paulo foram 5.500 e mais de duzentos mil ficaram doentes.

Quando os teatros e cinemas reabriram, o jornal A Gazeta relatou que “a cidade apresentou um aspecto festivo. À noite, todas as casas de diversões lograram um público avultado, tendo estado animadíssimas as ruas do Triângulo até depois das 22 horas.”

Era a vida, que resistia a todos os flagelos e os sobreviventes celebravam a sua própria vitória sobre a morte.

*José Roberto Walker é autor do romance histórico ‘Neve na Manhã de São Paulo’ (Companhia das Letras)

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