Correção de rumo sobre China é inteligente
EUA estão profundamente interligados economicamente com o país asiático e já deram sinais de querer a reconciliação
Fareed Zakaria, O Estado de S. Paulo, 22/04/2023
Os EUA e a China embarcaram em uma das experiências mais arrepiantes da história internacional. Ambos os lados agora estão presos em uma competição geopolítica crescente. Mas estão profundamente interligados economicamente. Essas duas tendências – tensão geopolítica e engajamento econômico – podem continuar ou uma delas cederá?
Nos últimos anos, enquanto Washington e Pequim rivalizavam, o comércio de mercadorias EUA-China permaneceu forte, atingindo um recorde histórico de quase US$ 700 bilhões em 2022. As principais empresas americanas obtêm grande parte de sua receita da China. O maior mercado de exportação dos agricultores americanos é a China.
O governo Biden adotou uma política em relação ao país que é mais estratégica do que as tarifas de Donald Trump. Ele tentou negar à China o acesso a algumas das tecnologias de ponta, principalmente os chips de computador mais avançados do mundo. Também fez investimentos em larga escala em ciência e tecnologia e está até fornecendo subsídios para recuperar a fabricação de alta tecnologia nos EUA.
O esforço aqui, usando a metáfora do conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan, é construir um “pequeno espaço” de tecnologias essenciais “protegidas por uma cerca alta em torno dele” (em vez de apresentar uma longa lista de tecnologias que seriam difíceis de isolar da China). Mas o desafio será ver se todos esses esforços, e a retórica hostil que os cerca, levarão as empresas americanas a deixar de negociar com a China.
MUDANÇA. Ultimamente, o governo parece ter reconhecido esse perigo e tem tentado enviar alguns sinais conciliatórios. A secretária de Comércio, Gina Raimondo, costuma dizer que os EUA não querem uma dissociação econômica da China. Em novembro, ela disse: “Precisamos continuar a fazer negócios com a China e o comércio com a China sustenta os empregos americanos”. Quinta-feira, em um importante discurso sobre a China, a secretária do Tesouro, Janet L. Yellen, pediu um relacionamento “construtivo” entre os dois países. Ela enfatizou que as restrições tecnológicas dos EUA à China não foram projetadas para impedir o crescimento do país asiático, mas foram impostas apenas por razões de segurança nacional – para impedir que os militares chineses ganhem paridade ou vantagem sobre os EUA.
Mas a política sobre a China vive em Washington, uma cidade que não é conhecida por nuances. As primárias republicanas prometem ser um festival de ataques à China. O comitê da China do deputado republicano Mike Gallagher já anunciou que investigará as empresas que fazem negócios na China. E não se esqueça que a China também tem política interna. A linha dura de Xi Jinping contra os EUA é popular em um país bastante nacionalista.
A dissociação já está acontecendo. Como mostra o Peterson Institute for International Economics, os fortes números do comércio na verdade mascaram uma queda nas exportações dos EUA para a China; por causa da inflação, o valor em dólares das mercadorias aumentou mesmo quando o volume está estável ou em queda. Empresas como a Apple estão procurando maneiras de diversificar fora da China. Os ganhos da General Motors na China caíram quase 70% desde 2014.
Parte disso é uma diversificação saudável, reduzindo as dependências excessivas da China. Mas a verdadeira questão é: para onde estamos indo? Se essas tendências continuarem e se acelerarem poderemos ver o mundo dividido em duas zonas, econômica e tecnologicamente. E muitos países não vão querer limitar suas opções escolhendo apenas uma zona.
O presidente francês, Emmanuel Macron, pode ter sido muito direto sobre suas preocupações sobre a Europa se tornar um “vassalo” dos EUA, mas suas opiniões são amplamente compartilhadas na Europa e além. A guerra na Ucrânia prejudicou a Europa ao aumentar seus custos de energia enquanto beneficia os EUA, que é o maior produtor mundial de hidrocarbonetos e vende muitos a baixo custo. Empresas europeias estão transferindo investimentos para os EUA, atraídas em parte pelos generosos subsídios da Lei de Redução da Inflação.
DESORDEM. De forma mais ampla, se as tensões geopolíticas vencerem e os laços econômicos continuarem a enfraquecer, entraremos em um mundo muito diferente, marcado por muito mais caos e desordem em todos os níveis. Um sinal disso pode ser visto no impasse sobre a reestruturação da dívida. Dezenas das economias mais vulneráveis do mundo estão em alto risco de superendividamento. Mas o Fundo Monetário Internacional não pode socorrer esses países, pois a China (que é um dos maiores credores do mundo) não pode chegar a um acordo com as nações ocidentais sobre os termos do alívio.
A última vez que duas grandes potências mundiais tentaram administrar uma relação de interdependência econômica e crescente rivalidade geopolítica ocorreu com o Reino Unido e a Alemanha no período de 1880 a 1914. Essa experiência terminou com uma guerra que destruiu grande parte do mundo industrializado. Ambos os lados devem tentar garantir que façamos melhor desta vez.
ARTIGO930