É preciso “mudar de modelo”
De partida, é preciso ponderar que, uma vez graduado em ciências econômicas, mantive um permanente recuo epistemológico em relação a esse conjunto de saberes – ou a esse “saber de atenção científica”, como Roger Guesnerie denomina a Economia –, o que conduziu minha carreira acadêmica à filosofia das ciências humanas. É a partir desse quadro geral e mais amplo que formulo a reflexão a seguir.
Desde que o atual governo assumiu a gestão do Estado brasileiro, convencionou-se caracterizá-lo de neoliberal. De minha parte, tento a cada dia compreender a suposta estratégia governamental no conjunto de políticas implementadas e, quase sempre, deparo-me com uma dupla constatação: não há estratégia e não há liberalismo.
Sabemos que o liberalismo econômico se modificou significativamente do século XVIII àquele de Walras, Jevons, Menger e Hayek, passando por Mises. Todavia, na complexa continuidade de um modo a outro de racionalização da economia, costuma-se defender a redução do papel do Estado como condição sine qua non de um modelo liberal. Ainda que sejamos críticos desse modelo, se o tomarmos por pressuposto, constataremos uma contradição ao observar a gestão brasileira, pois, nos cortes de orçamento realizados e nas reformas propostas, privilégios são concedidos a algumas categorias profissionais e a selecionados setores empresariais. Além disso, é preciso, de toda maneira, confrontar o liberalismo e o chamado ultraliberalismo, distintivo da Escola de Chicago, com os desafios da contemporaneidade.
A situação brasileira faz lembrar o tempo da França de Luis XIV, o rei Sol, que provocou a revolta popular devido à pressão fiscal. O povo francês padecia com o nível dos impostos, enquanto a nobreza organizava bailes e banquetes. Contudo, noutra perspectiva, as mesmas medidas do atual governo criam um abismo incomensurável entre ele e o reinado de Luis XIV. O rei Sol foi o responsável pela criação da Academia Real de Ciências e do Observatório de Paris; abriu o caminho que hoje corresponde à Avenue des Champs-Élysées; construiu o Hôtel des Invalides, responsável por acolher os enfermos e mutilados de guerras; e fundou ainda a Comédie Française, que reunia duas companhias da época, dentre elas aquela de Molière. Ainda que, em sua época, suas realizações buscassem atender às suas próprias necessidades e àquelas da nobreza, seu reinado acumulou realizações nas áreas da pesquisa e da educação, bem como naquela da saúde, sem preterir as artes e a mobilidade urbana.
No Brasil de hoje, experimenta-se o antagônico. Em março de 2019 foi anunciado o corte de R$ 5,8 bi nas verbas destinadas à educação. Se seus impactos pareciam se restringir inicialmente à pesquisa e à educação superior, pudemos observá-los igualmente na educação básica, em programas específicos voltados à erradicação do analfabetismo. Em seguida, foram suspensas as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDPs), que não somente visavam a desenvolver novas tecnologias e a produzir medicamentos como a insulina, mas também a contribuir para a regulação dos preços praticados no setor farmacêutico.
Nesse contexto, retomemos a discussão sobre teoria econômica. Foi Robert Solow que elaborou o modelo de desenvolvimento de tipo neoclássico, ainda hoje dominante. Ele recupera o liberalismo do sec. XVIII sem relegar o papel do Estado, ainda que de forma restrita. O modelo Solow-Swan, como é conhecido, aceita as reflexões de Keynes correlacionando três variáveis capitais: crescimento populacional (trabalho), acumulação de capital e aumento na produtividade (tecnologia). Se, por um lado, a tecnologia é considerada a variável determinante para manutenção do crescimento no longo prazo, por outro, os economistas não se debruçaram suficientemente sobre ela. Então, cabe indagar: como gerar inovação?
A questão acima é a principal preocupação de Philippe Aghion, economista francês que juntamente com Peter Howitt desenvolveu um modelo econômico inspirado nas pesquisas de Joseph Schumpeter. Este sublinhara, muito antes de Solow, a importância da inovação para a longevidade do crescimento econômico.
Segundo Aghion, a aceleração da inovação deve ser empreendida não somente em quantidade, mas também em qualidade. Ele defende que se passe de uma economia de substituição – que adota as transferências de tecnologias advindas de países mais “avançados” como motor de crescimento – a uma economia de inovação, que somente pode ser promovida por meio de investimento em educação e pesquisa. Assim concebida, a inovação não somente impulsiona a produtividade, mas também reduz desigualdades por meio da promoção de mobilidade social.
Como alerta Aghion, desta vez acompanhado de Gilbert Cette e Élie Cohen, é preciso “mudar de modelo”. Eis uma dupla referência. Primeiramente, uma crítica ao saber econômico e, mais precisamente, à “pretensão dos economistas” que visam a tudo solucionar por meio da modelização, “como se as sociedades se fabricassem a partir de modelos”. Em segundo lugar, uma constatação em tom de convocação: é preciso mudar os “modos de pensar” para que o modelo econômico e institucional seja transformado.
Além do uso de subvenção pública para corrigir as desigualdades de acesso (1) ao conhecimento e (2) ao emprego, bem como para reparar (3) a perda de competitividade das empresas, é necessário encorajar a inovação tecnológica por meio de um sistema fiscal adaptado, sem a desregulamentação do mercado ao modo preconizado pelo liberalismo de Chicago.
Segundo ele, uma gestão fundada no modelo keynesiano já não tem o efeito esperado no mundo globalizado, pois os estímulos ao consumo acabam por aumentar a importação, e não a produção doméstica, em especial em países como o Brasil, onde os produtos estrangeiros são mais competitivos: têm usualmente preço e qualidade melhores.
Um contra-argumento à proposta de Aghion é o aumento do desemprego, já que a tecnologia substituiria a mão-de-obra. Entretanto, suas pesquisas indicam que a inovação aumenta a produtividade e, ao contrário do que se pensa, gera mais empregos: extinguem-se atividades e criam-se outras tantas, daí a importância do investimento em educação, condição de possibilidade da mobilidade social. Como se vê, uma reforma da educação passa necessariamente pela qualidade dos professores e pela sua formação continuada, oportunizando a retificação das desigualdades de “acesso ao conhecimento”.
Outro contra-argumento concerne à ecologia. O investimento em tecnologia aumenta a produtividade e demanda cada vez mais recursos, o que promoveria uma dupla investida sobre a natureza: amplificação da poluição e da extração. Contudo, o investimento em inovação defendido por Aghion é imperiosamente em tecnologia verde.
O recente artigo de Andre Lara Resende – Por que Summers e Bernanke agora defendem política fisal expansionista? –, que justifica a necessidade impreterível de aumento do gasto público em meio à pandemia de covid-19, não somente se harmoniza com declaração da atual Secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen – “Responsabilidade fiscal, neste momento de crise, é oferecer estímulo” –, mas também com o modelo preconizado por Philippe Aghion.
Enfim, é urgente “mudar de modelo” – e, aqui, refiro-me mais precisamente à orientação das medidas da atual gestão do país –: sem investimentos em pesquisa e em educação e sem a premente paralização de cortes de orçamento em programas como as PDPs, não conseguiremos senão gerar perda de competitividade e recessão, degradando as condições de vida dos brasileiros.
As mais recentes deliberações do governo brasileiro continuam a preocupar, pois, considerando as ponderações acima, pergunto-me em que direção o Brasil caminha ou, mais radicalmente, se realmente caminhamos…
* Alessandro Francisco é economista com Duplo Doutorado em Filosofia (PUC-SP e Université Paris 8), professor de cursos de pós-graduação Lato sensu do UNIFAI, pesquisador associado à Université Paris 8 e membro da International Society for Eighteenth-Century Studies.”
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