‘Economia É Coisa Séria’ reúne artigos de Delfim Netto
Papel do Estado, concorrência com China e mercado são destaques em coletânea
Por Célia de Gouvêa Franco — Para o Valor, de São Paulo – 29/01/2021
Um rápido exercício explicita de forma inequívoca qual é o ponto central do novo livro do ex-ministro Antonio Delfim Netto, personagem que dispensa maiores apresentações, em especial para os leitores do Valor, jornal para o qual escreveu durante 18 anos. O tema mais tratado por ele não foi nem crescimento (palavra citada 119 vezes nos seus textos), nem PIB (102 vezes), muito menos inflação (apenas 71 vezes nas 200 páginas). Já a palavra Estado apareceu 220 vezes. Ou seja, foi citada mais de uma vez por página.
O debate sobre o tamanho e as funções do Estado predomina, mas as distorções na economia e na política provocadas pela importância dada ao mercado financeiro e as comparações entre o frágil crescimento do Brasil e outros países – notadamente a China – também são temáticas de destaque.
“Economia É Coisa Séria – Brasil, Mercados, Política (2000-2018)” (Portfolio Penguin, 200 págs., R$ 69,90) reúne uma seleção de artigos escritos por Delfim e publicados pelo Valor entre 2000 e 2018 e agora organizados pelo jornalista André Mendonça de Barros em quatro blocos temáticos – a começar por “O Estado, o Mercado e as Urnas – O Brasil e os Papéis do Estado e do Setor Privado”.
O tema do papel do Estado perpassa todos os artigos dessa sessão e é tratado de forma exclusiva em alguns deles. Ex-ministro, ex-deputado federal e ex-embaixador, Delfim se dividiu entre essas funções governamentais e uma longa carreira como consultor do setor privado. E é certamente baseado nessa variada experiência que ele deixa clara sua opinião sobre obrigações e tamanho de governos, em especial nos países em desenvolvimento.
Delfim escreveu em agosto de 2004: “A história econômica mundial mostra que o papel do Estado é essencial para a realização do desenvolvimento econômico. É ele que pode reduzir a opacidade do futuro e estimular o ‘espírito animal’ dos investidores; é ele que pode facilitar o aumento do crédito para investimento; é ele que pode desonerar o investimento em bens de capital; é ele que pode reduzir com cuidado as tarifas de importação, o que aumenta a produtividade e no curto prazo tende a elevar a taxa de câmbio, aumentando a proteção ao mercado interno e estimulando as exportações; é ele que pode realizar as reformas microeconômicas e uma inteligente política de estímulo à criação de nova tecnologia. O desenvolvimento sustentado é, numa larga medida, o resultado de um estado de ‘espírito’ que se apropria de um país que ousa crescer estimulando seus empresários, sem desobedecer à desagradável aritmética orçamentária. Aos ‘cientistas econômicos’ está reservado o papel de dizer que isso é muito perigoso”.
Na época em que o artigo foi editado pela primeira vez pelo Valor, era presidente do país Luiz Inácio Lula da Silva – o período abrangido pelo livro inclui também o governo de Fernando Henrique Cardoso e de Dilma Rousseff. Chama a atenção hoje, como bem ressaltou André Mendonça de Barros na apresentação da obra, a tendência de Delfim de ter baixado o tom das suas críticas ao período em que o PSDB mandava em Brasília e de ter elevado as críticas às administrações petistas.
Delfim escreveu muito sobre o que considera serem as explicações para as dificuldades econômicas do país. Principalmente as dificuldades para a manutenção de um crescimento expressivo e sustentado por um longo período – tema que continua, infelizmente, muito atual neste início dos anos 2020. Alguns trechos dos escritos de Delfim sobre o atraso do Brasil em termos de crescimento do PIB poderiam ser reproduzidos hoje e continuariam sendo atuais, bastando trocar os anos em análise e os cálculos sobre taxas de expansão da economia.
Em cálculos que serviram como base para o artigo “Tributação e Crescimento”, de maio de 2012, ele cita, por exemplo, que o país teve um crescimento medíocre nos 15 anos anteriores, da ordem de 3,3% ao ano. Como a população cresceu 1,4% ao ano, a expansão econômica per capita foi da ordem de 1,9% nesses 15 anos. Em dezembro, o Valor publicou que o país deve ter registrado, ao fim de 2020, os piores resultados da variação do PIB per capita dos últimos 120 anos. Quase dez anos depois do artigo de Delfim, o dilema é o mesmo.
O ex-ministro deixa à mostra, nessas análises sobre PIB, sua obsessão – ou sua insistência, como ele mesmo reconhece – com a “necessidade” de o Brasil exportar mais e com a política cambial. No texto “Chega de Culpar os Outros”, de maio de 2002, ele não mede palavras ao comentar as variações de política econômica em relação ao câmbio ao longo de décadas: elas seriam simplesmente bobagens. Ao longo do livro, ele também bate muito na tecla de quanto o país poderia ter crescido se tivesse mantido ou aperfeiçoado mecanismos de estímulos às exportações, comparando a situação brasileira com a da China e da Coreia do Sul.
O último grande bloco de artigos é dedicado aos temas internacionais. E é curioso que o livro seja publicado neste mês de janeiro marcado pela tumultuada troca de comando nos Estados Unidos, porque um dos textos dele traz uma análise sobre o ex-presidente Donald Trump e o Partido Republicano, publicado pela primeira vez pelo Valor em março de 2017.
Em “Trump e a História Americana”, Delfim na verdade se detém mais no perfil dos republicanos e sua tendência histórica de buscar o isolacionismo do país, de manter os americanos distantes de outros povos. Para o ex-ministro, esse traço é tão marcante no partido que ajudaria a tornar Trump uma figura menos absurda:
“Essa pequena excursão à essência do pensamento republicano faz parecer menos idiossincrático o estranho comportamento do presidente Trump. Ele talvez responda a um profundo sentimento de parte da nação americana, que sempre pensou: ‘Somos tão bons que é melhor andarmos sozinhos do que mal acompanhados’”.
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