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Em São Paulo, academias ensinam jiu-jitsu para crianças com brincadeiras

Por Lucas Couto, especial para o Estadão, 03/02/2023

Modalidade das artes marciais é passada por mestres faixa presta e aposta em valores como disciplina, respeito e foco com a molecada a partir dos 3 anos de idade

Entre brincadeiras de “Raio Laser” e “Touro Mecânico”, os alunos a partir de 3 anos de idade dão seus primeiros passos dentro do jiu-jítsu, tendo contato de forma lúdica com a arte marcial, mas aprendendo no dia a dia os valores de disciplina, foco, concentração e, sobretudo, o respeito que ela traz consigo. Com crianças cada vez mais se interessando pela modalidade, escolas e academias focadas na “arte suave” se espalham por São Paulo, com a missão de formar cidadãos através do esporte. A molecada tem se divertido com as aulas de mestres faixa preta que se vale das brincadeiras para ensinar, mas sem perder de vista alguns dos lemas do esporte. O jiu-jítsu tem transformado esses pequenos.

No espaço que antes abrigava uma adega, o faixa preta primeiro grau Felipe Franhani comanda na zona oeste de São Paulo a unidade da Vila Romana da Gracie Barra, tradicional escola da arte marcial que surgiu no Japão em meados do século 14, e leva os preceitos do mestre Carlos Gracie Jr. em mais de 1000 unidades espalhadas pelo mundo.

De acordo com dados do site Gympass, que cadastra academias disponíveis para planos empresariais ao redor do Brasil, cerca de 33 locais disponibilizam a prática de jiu-jítsu infantil na Grande São Paulo. Os preços das mensalidades —geralmente com duas aulas programadas por semana—, estão na casa dos R$ 110 a R$ 180.

Com turmas divididas entre a GBI (para crianças de 3 a 5 anos), GBII (de 6 a 9) — que somadas totalizam 40 crianças — e a categoria Júnior (10 a 15 anos), a Gracie Barra da Vila Romana tem como missão plantar nas crianças valores que elas irão levar para o resto da vida. O Estadão esteve na academia. “A gente está sempre frisando que o importante é estar aprendendo o tempo todo e treinar cada vez mais. E a gente também diz que às vezes a derrota te ensina e a vitória te cega. Então, é ter humildade. Reconhecer que você venceu e aprender com seus erros. A questão do nunca desistir. A gente fala do nosso credo, do nosso lema de fortalecer o corpo, a mente e o espírito”, diz o professor Felipe Franhani, proprietário da unidade.

Os valores trazidos pela “arte suave” já são percebidos pelos pais das crianças, que se orgulham em citar como a prática do jiu-jítsu alterou para melhor o comportamento de seus filhos. Karina Cortina é mãe de José Renato, de 9 anos, que há poucos meses iniciou os treinos na Gracie Barra. Apesar do pouco tempo de prática, a mãe já identificou melhorias no comportamento do filho, que passou a ser mais responsável e respeitoso. “O dia que tem jiu-jítsu é um dia que não tem problema, o horário vai ser cumprido, porque é um dia de prazer”, disse.

“Sempre achei que as artes marciais ensinavam disciplina, respeito e hierarquia. Acho que é importante, além do treino de força, de ser um esporte, tem toda essa questão da disciplina, que acho que é importante para essa juventude de hoje”, seguiu. “Ele se veste sozinho, coloca o quimono, faz todo ritual para cuidar das próprias coisas. Só de ele cuidar disso, já acho importante, de ele ter essa responsabilidade. Outra coisa que achei legal é que ele já observou como funciona a postura no tatame. Então, já faz referência ao tatame quando entra, cumprimenta o mestre. Pelo menos aqui, ele já está entendendo essa questão da hierarquia”, acrescentou Karina.

 

FORMA LÚDICA

O professor explica ao Estadão como adapta os métodos de ensino dos fundamentos do jiu-jítsu em brincadeiras para a criançada, que ganham momentos de descontração após cumprirem a série estabelecida de treinamentos.

“Fazemos cabo de guerra, pique bandeira, todas brincadeiras a gente coloca mensalmente ou semanalmente como uma recompensa após o treino de técnicas. A gente aborda defesa pessoal, treinamentos em situação de bullying, onde o agressor quer demonstrar superioridade física ou mesmo machucar a criança, técnicas de pé e técnicas em solo. Depois, a gente libera a criança para a brincadeira. Elas gostam muito de uma chamada ‘Bulldog’. É como se fosse um pega-pega, mas nessa o pegador é um ‘Bulldog’, e o objetivo dele é derrubar. E nesse momento é bom para treinar alavancas e como derrubar e as crianças aprendem a cair e as regras associadas ali. É super legal essa brincadeira”, explicou Franhani.

No dia da visita da reportagem, o “Bulldog” foi substituído pelo “Touro Mecânico” e “Raio Laser”, que não fica atrás na preferência da criançada. Além de Felipe, a unidade contou com o professor faixa marrom Marcelo Dias, que auxiliou nos treinamentos corrigindo movimentos e instruindo as crianças.

Clara, de 5 anos, estava estreando em um novo horário e dentro do tatame não continha os sorrisos ao participar das brincadeiras. Mais tímida, em conversa com o Estadão, tentou explicar as atividades. “Ele roda a faixa e a gente tem de pular ou se abaixar na brincadeira do ‘Raio Laser’”. Quando comentou sobre o Touro Mecânico foi categórica e sincera: “É difícil não cair.”

 

AUTOCONFIANÇA

O professor Franhani cita o exemplo de um aluno que chegou ao dojo, local onde se treinam artes marciais, acanhado e tendo de lidar com medo de agulhas, dificultando a realização de exames médicos de rotina e aplicação de vacinas, por exemplo. Com as lições tomadas dentro do tatame, a família percebeu que o garoto, aos poucos, foi lidando com seus temores e hoje é considerado “um tratorzinho” pelo professor devido à força que desenvolveu nas aulas.

“Aqui, acho que é principalmente a questão da defesa pessoal, principalmente para as meninas, que dá muita confiança. Saber o que pode fazer, o que não pode. Então, principalmente as meninas, vão ganhar mais autoconfiança. Mas é isso, a autoconfiança, ser uma melhor pessoa e acabar com esse negócio de brigão”, disse.

Ainda assim, ele afasta a ideia errônea de que praticar uma arte marcial pode deixar a criança violenta. No Gracie é ensinado “Que o bom de luta não é o bom de briga” e que “é bom saber e não precisar usar (o jiu-jítsu) do que precisar usar e não saber.”

Franhani revela que um de seus próximos passos é eternizar nas paredes do local um lema proferido pelo fundador da Gracie Barra, Carlos Gracie Jr, para que os alunos absorvam essa ideia cada vez que chegarem ao dojo. “Nós buscamos treinar o corpo, a mente e o espírito através do mais alto nível de instrução do jiu-jítsu. Imaginamos o estudo da arte como veículo fundamental de desenvolvimento individual e de fortalecimento do espírito de família, indo além da filosofia de meramente ganhar ou perdão. As aulas GB Kids I e II acontecem de terça e quinta na parte da manhã (8h30 e 9h10) e à noite (18h) e (18h40).

 

BENEFÍCIOS NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Segundo um artigo da Universidade São José, do Rio, realizado por Daniel Sousa da Silva e a mestra em Educação Física Cátia Malachias Silva, publicado na revista da entidade “Ciência Atual”, “O jiu-jítsu é conhecido por ensinar técnicas que são levadas para a vida real. O propósito do jiu-jítsu escolar não deve ser formar atletas nem competidores, mas sim a prática corporal, a busca de condicionamento físico e a formação do cidadão. A disciplina e hierarquia transmitidas durante as aulas refletem positivamente no comportamento da criança em todos os ambientes”, diz o artigo.

A publicação ainda reforça que a prática da “arte suave” é fundamental para implementar desde cedo nas crianças noções de respeito, empatia e superação, corroborando o que muitos professores apresentam como um diferencial da modalidade.

“Os pequenos praticantes aprendem a tratar o próximo com respeito, principalmente quando se esta em uma posição de superioridade, evidenciando sempre a humildade. Como em qualquer esporte de contato, o jiu-jítsu oferece um ambiente desafiador, que evidencia a superação e permite a criança amadurecer para se tornar um cidadão de bem.”

 

O ‘BOOM’ DO JIU-JITSU INFANTIL EM SÃO PAULO

Em conversa com a reportagem do Estadão, algumas academias apresentaram suas formas de ensinar a “arte suave” para jovens. A Nogueira Team, em Santo André, academia ligada aos irmãos Rodrigo Minotauro e Rogério Minotouro, lendas do MMA e do jiu-jítsu brasileiro, afirma dividir as aulas infantis em duas modalidades: dos 4 aos 7 anos — onde a arte marcial também é apresentada envolta nas brincadeiras e atividades lúdicas —, e as crianças de 8 até os 12 anos, onde as bases da luta são apresentadas de forma mais intensa.

Na estimativa, são 35 alunos (10 na faixa dos 4 aos 7 anos e cerca de 25 dos 8 aos 12), que após completarem 13 anos, passam a treinar normalmente com os adultos.

Dentro da onda da expansão do jiu-jítsu na cidade, outros grandes nomes das artes marciais do Brasil embarcaram na missão de popularizar a “arte suave” entre as crianças. Maurício “Shogun” Rua, ex-campeão mundial dos pesos meio-pesados (até 93 kg) do UFC, e Demian Maia, que ainda atua na galeria, têm academias focadas no ensinamento da modalidade. Como são lendas das lutas, a molecada curte quando estão por perto.

Já na academia Team Fight, localizada na zona sul da capital paulista, as aulas voltadas para as crianças se iniciam a partir dos 5 anos de idade, com turmas “kids”, de 5 a 10 anos, e “teen”, de 11 a 16 anos. O plano da academia é ir ao encontro da mesma filosofia das suas concorrentes e iniciar aulas para crianças a partir dos 3 anos, na categoria “baby”, frisando valores como “disciplina e respeito aos coleguinhas”.

Na Blackout Jiu-Jítsu, localizada em Carapicuíba, na Grande São Paulo, o professor Gentil de Oliveira Rodrigues, faixa preta segundo grau da modalidade, explica ao Estadão as divisões que o local tem para as aulas infantis, que estão disponíveis de terça, quinta e sábado na parte da manhã (10h) e da noite (18h). “Inicialmente começamos com crianças de 6 anos. Dos 6 aos 12 anos. Acima disso, elas já entram como adultos. Até porque a formação óssea e o tamanho não são bons para que elas continuem com os pequenos”, diz.

Gentil ainda reitera que para as crianças menores, entre 3 e 5 anos, a parte lúdica é fundamental para o reforço da coordenação motora, equilíbrio e força. Mas que além disso, o foco das aulas é ensinar alguns valores para os pequenos. Os movimentos vêm depois disso.

“Na aula do “kids”, a gente tem de ter um cuidado, porque trabalhamos com a parte motora, de concentração. Algumas brincadeiras são colocadas, voltada para o jiu-jítsu, para que eles tenham equilíbrio e força. Então, tudo tem de ser bem coordenado. Isso leva um pouco mais de tempo e de cuidado. Estamos iniciando agora com turmas de 3 até 5 aninhos. E esse treino vai ser mais de brincadeira, não vai ter tanto a luta em si. Eles precisam lidar com a perda, como é perder, como é ganhar e ter aquele sentimento de ajudar o colega, é um pouquinho mais complexo”, disse.

Segundo a própria Federação Paulista de jiu-jítsu, em tabela divulgada em seu site oficial, as categorias registradas para o infantil iniciam-se a partir dos 7 anos de idade, na categoria Mirim. Entre os 8 e 9 anos, as crianças são enquadradas como “Infantil A”, sendo promovidas ao “Infantil B” entre os 10 e 11 anos. Dos 12 aos 13, as crianças são colocadas na categoria “Infanto A”, seguindo para a “Infanto B”, até os 15 anos e chegando, por fim, ao “Juvenil” entre os 16 e 17 anos. Posteriormente, com a maioridade legal completa, inicia-se a categoria adulta da modalidade. O problema é que a garotada dos 3 anos anda pedindo passagem.

ARTIGO901

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