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“Favela doou mais que o asfalto, as classes A e B”, diz Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva

Sonia Racy – 14 de setembro de 2020 | 00h49

Ninguém investigou mais os efeitos da pandemia na alma, no bolso e nos hábitos do brasileiro quanto Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva e do Data Favela. Desde março, foram mais de 27 pesquisas. Para o empresário, a covid-19 atuou como grande acelerador de tendências. “Vivemos cinco anos em cinco meses”, observa.

Meirelles introduziu uma maneira muita própria para suas sondagens. O ex-Data Popular, que analisava pesadamente as Classes C e D, montou o Locomotiva levando em consideração não só a faixa salarial dos entrevistados, mas principalmente seus hábitos de consumo.

Curiosidade: qual o nível de confiabilidade na resposta dos entrevistados? Como saber se estão dizendo o que acham, ou inventando por algum motivo? Meirelles, do alto de sua objetividade, pondera: “Não sei se as pessoas sabem, mas elas mentem. Mentem querendo mentir, mentem sem perceber que estão se enganando e muitas vezes mentem tendo certeza que estão falando a verdade”.

Para o pesquisador, o desafio de uma boa análise de pesquisa é saber a diferença entre o que a pessoa diz que faz, pensa que faz e realmente faz. “Nenhum método de pesquisa sozinho é capaz de entender esse movimento. Por isso, temos que juntar fenômenos de pesquisas quantitativas. Aí, mais profundamente, vamos analisar o que está por trás daquelas declarações. As análises têm que ser também continuas para podermos detectar tendências do mercado, não há como nos limitarmos a números”.

Voltando à covid-19, as pesquisas comandadas pelo filho de dois psicólogos da Vila Madalena, em São Paulo, mostram, “o incrível senso de comunidade que uniu a população mais vulnerável no enfrentamento da doença”. De outro lado, mesmo com o gigante aumento de doações da iniciativa privada, o individualismo exibido por uma parte da elite brasileira continua solto. Aqui vão trechos da conversa.

Explique essa ideia do acelerador de tendências.

A grande característica da covid-19, mais do que um agente de mudança, foi atuar como um acelerador de processos latentes na sociedade brasileira. Experimentamos, por exemplo, um brutal processo de digitalização da educação. Vimos uma ampliação das carteiras digitais e o fortalecimento de super apps de consumo com forte expansão do e-commerce. Fora isso, a pandemia escancarou a desigualdade de renda no Brasil. Está cada vez mais claro que, ou a sociedade aprende a dividir melhor as oportunidades, ou todos nós pagaremos um alto preço pelo nosso abismo social.

Quais são os destaques das pesquisas?

Uma delas mostra que nove entre dez brasileiros não sabem para onde vamos passada a pandemia. Nada será como antes. Ainda bem, até porque o “antigo normal” foi o que fez esse País tão desigual.

Na questão do coronavírus, quais dados chamaram mais atenção?

Um deles foi colocar por terra fake news disseminada no começo da pandemia: a de que o corona era um vírus democrático, que matava igualmente pobres e ricos. Os anticorpos sociais de um País brutalmente desigual como o nosso desmentem a tese. Como uma família de muitas pessoas, dividindo um único cômodo numa favela, sem água encanada, pode fazer isolamento social? Outro dado surpreendente: proporcionalmente, a favela doou mais do que o asfalto, mais do que as classes A e B. É nas periferias que encontramos um senso arraigado de comunidade, uma lógica de reciprocidade. ‘Se um vizinho tem comida, ninguém passa fome”. Essa foi uma frase que escutamos muito nas pesquisas.

Do lado da classe mais rica?

Nessa questão, surgiu dado estarrecedor: um terço das classes A e B – ou seja, gente que pertence aos 25% mais ricos do Brasil – pediram auxílio emergencial e, pasme, 69% deles conseguiram. Proporcionalmente, mais ricos receberam o auxílio emergencial do que aqueles que realmente precisavam, as classes D e E. Sem dúvida alguma, o Brasil tem muito a aprender com a favela.

Como se explica um comportamento desses?

Pesquisas do Locomotiva e do Data Favela apontam para uma espécie de comportamento de compensação. As classes A e B também foram afetadas pela crise econômica que se instalou no País a partir de 2013. Surge, então, uma espécie de justificativa: “Ah, eu já pago tanto imposto e não recebo nada em troca. Então, chegou a hora de ganhar alguma coisa do Estado”. Os entrevistados não tinham a sensação de que estavam fazendo algo errado ou moralmente reprovável ao requisitar o auxílio emergencial, como numa espécie de nova versão da velha “Lei de Gerson”, do jeitinho brasileiro.

Isso é muito triste…

O processo de polarização que o País viveu nos últimos anos criou um comportamento individualista, em especial na parcela mais rica da sociedade. As denúncias de corrupção, de desvio de dinheiro público, a demonização da política, criaram um distanciamento entre o cidadão e o Estado. Mas tem coisa boa surgindo. Não me lembro de um movimento tão grande e tão abrangente liderado por grandes empresários, por parte da elite, com o objetivo de minorar o sofrimento da população menos favorecida. De um lado tivemos empresários doando, do outro, encontramos organizações como a Central única das Favelas e o Gerando Falcões, que conseguiram escoar essas doações de forma mais rápida e efetiva do que o poder público. Foi essa parceria que salvou o Brasil de uma convulsão social

A que atribui essa mudança?

Ao entendimento de que, ou a sociedade brasileira como um todo socializa as oportunidades, ou corremos o risco de pagar um alto preço pela desigualdade. Houve uma mobilização inédita e nobre em função de uma tragédia sanitária e social. E, digo sem medo de errar: ou acontecia isso ou teríamos convulsão social, saques, depredações.

Qual será o novo papel do Estado?

Acho que está, pelo menos me parece, cada vez mais óbvio que a maioria da população não liga se o Estado é grande ou se o Estado é pequeno. As pessoas simplesmente querem um Estado que funcione.

Até que ponto os meios digitais podem contribuir na fiscalização do poder, podem ser usados como instrumento de pressão?

A tecnologia empodera o cidadão. Ele consegue filmar o abuso policial ou mostrar o posto de saúde fechado, por exemplo. As redes sociais conseguem dar voz a essa parcela da sociedade. Mas, muitas vezes, esse cidadão fica preso aos algoritmos, não vai além da bolha, acaba reproduzido fake news. Então, tão importante quanto a democratização tecnológica, é termos imprensa livre. Nunca, como nesta pandemia, a imprensa livre e independente foi tão necessária. Histórias de gente perdendo a vida, o senso de gravidade do que está acontecendo, isso tudo continua chegando até nós por causa do trabalho da imprensa.

Parece que você tem uma pesquisa fresquinha sobre o que pensa o brasileiro sobre o futuro, não?

A parte boa é que não tivemos isolamento social. Tivemos um isolamento físico, somente. Graças às novas tecnologias, amigos que não se falavam há muito passaram a se encontrar, familiares que antes não conversavam ao redor da mesa, passaram a se relacionar. Mas também resgatamos coisas ruins, como a violência doméstica, o divórcio.

Será que a pandemia fez com que as pessoas questionassem o rumo que tomaram, olhassem suas dúvidas? Ou na hora em que as coisas se estabilizarem, tudo voltará à mesmice?

As pesquisas mostram um grande freio de arrumação civilizatório em curso. O que quero dizer com isso? As coisas estão mais transparentes. Quando você passa muito tempo tendo de lidar com você mesmo e com as pessoas que convivem com você, as máscaras caem. De todo modo, gosto de lembrar, que depois da peste negra, veio o Iluminismo, e com ele avanços enormes na sociedade.

Existem dados de pesquisas que mostrem como está a reação emocional das pessoas à pandemia?

Dois sentimentos se sobressaíram. Primeiro, a angústia atacou 73% dos brasileiros. Segundo, houve aumento da solidariedade. Cerca de 63% das pessoas afirmam que a generosidade cresceu durante o processo de confinamento.

No geral, o que as pesquisas apontam em relação ao futuro econômico do Brasil?

A sensação é que, no limite do aperto, só posso contar comigo e com os meus, com as pessoas que são mais próximas. Na prática, isso faz o quê? Que tenhamos hoje na sociedade brasileira otimismo em relação ao futuro pessoal, e pessimismo em relação ao futuro do País. É como se as pessoas achassem que o país não depende só delas, depende dos outros. Já com o futuro pessoal, basta continuar arregaçando as mangas. Isso tem efeitos positivos e negativos. Quando cada um chama para si a responsabilidade pela própria vida, temos uma sociedade mais madura. O efeito negativo é o aumento do descrédito das instituições que, no limite, garantem o sistema democrático.

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