‘GLO de portos e aeroportos é um show sem eficácia para combater o narcotráfico’, diz Anaís Passos
Para estudiosa, crença de que as instituições militares são mais eficientes que as civis para enfrentar o narcotráfico por, alegadamente, possuírem uma moral mais elevada e serem menos suscetíveis à corrupção não resiste à análise dos fatos
Diogo Schelp, O Estado de S. Paulo, 19/11/2023
Professora adjunta de Ciência Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
O decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que colocou militares para atuar na fiscalização de cargas e no patrulhamento em portos e aeroportos desde o último dia 6, com previsão para durar até o início de maio, é um “show que o Estado apresenta para a população para parecer que está fazendo alguma coisa”, mas tem pouca efetividade no combate ao crime organizado, diz Anaís Medeiros Passos, principal estudiosa do emprego das Forças Armadas na segurança pública no Brasil.
Para suas pesquisas, ela realizou mais de 100 entrevistas com generais que comandaram missões de GLO, tenentes-coronéis a cargo do dia a dia das operações, ex-ministros da Defesa, políticos e lideranças das comunidades afetadas, o que lhe permitiu identificar a existência de uma crença generalizada de que as instituições militares são mais eficientes que as civis para enfrentar o narcotráfico, por alegadamente possuírem uma moral mais elevada e serem menos suscetíveis à corrupção. Ela chamou a isso de “a mística militar”, uma ideia que não resiste à análise dos fatos.
Seu doutorado na universidade Sciences Po, na França, resultou em um livro publicado no ano passado pela editora britânica Palgrave Macmillan cujo título, traduzido do inglês, é “Democracias em Guerra contra as Drogas: a Mística Militar no Brasil e no México”. Professora adjunta de Ciência Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Passos analisou a politização das Forças Armadas em seu pós-doutorado pelo Instituto de Relações Internacionais da USP e, recentemente, foi pesquisadora visitante na Universidade da Califórnia, em Riverside, nos Estados Unidos, com um estudo sobre doutrina militar. A seguir, os principais trechos da entrevista que ela concedeu do México, onde atualmente passa uma temporada como professora convidada do Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey:
Qual foi o saldo das operações de GLO na área de segurança pública?
A GLO nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2012, teve um certo sucesso em reduzir crimes patrimoniais em regiões próximas a essas favelas logo que as Forças Armadas entraram. Houve, inicialmente, um efeito de dissuasão junto às facções criminosas. Mas a redução de crimes não foi sustentável. Quando o Exército saiu, os altos índices de criminalidade retornaram. A Polícia Militar simplesmente não dava conta de estar presente no território da mesma forma que com o emprego de 3.000 militares. Já a GLO no Complexo da Maré, entre 2014 e 2015, não teve tanto sucesso inicial porque havia quatro facções envolvidas e muito tiroteio entre elas. Mesmo com militares no território não foi possível coibir a violência. Dentre os efeitos adversos dessas operações, há o risco de violações de direitos humanos, pois os militares não possuem o treinamento de polícia para o uso mínimo da força, com foco na proporcionalidade e na legalidade. A gente sabe que, no Brasil, a PM também não atua assim muitas vezes, mas as Forças Armadas têm menos preparo ainda para isso. Sua função precípua é a defesa externa. E como as operações de GLO acontecem em territórios mais periféricos, geralmente não há um monitoramento e uma responsabilização criminal quando, por exemplo, um morador é confundido com um traficante e acaba morto. As Forças Armadas tratam isso como “dano colateral”.
O presidente Lula disse, ao anunciar a GLO nos portos e aeroportos, que o objetivo era “definitivamente tirar o poder do crime organizado”. Qual é a chance de isso acontecer?
As chances são baixas. Essa GLO é, sim, diferente das anteriores, pois não há soldados patrulhando as ruas. Mas não seria necessário decretar uma GLO para fazer a coordenação entre Polícia Federal, Polícia Civil e Forças Armadas para fiscalizar portos e aeroportos. A verdade é que a GLO tem um caráter político. A GLO é um show que o Estado apresenta para a população para parecer que está fazendo alguma coisa contra problemas que são muito mais complexos. O crime organizado não é algo externo à sociedade que basta arrancar e pronto, está resolvido. É algo enfronhado no funcionamento do próprio Estado e de certos negócios legais. A solução é muito mais complexa. Diversos estudos mostram que o desenvolvimento do crime organizado, como o tráfico de drogas, acontece em colusão e cooptação com agentes do Estado. Existem casos no Rio de Janeiro em que os traficantes eram militares.
Nos primeiros dias de funcionamento da atual GLO, militares da Marinha e da Aeronáutica a cargo das operações enfatizaram a importância de passar uma “sensação de segurança” à população. É esse o objetivo de uma GLO?
Escutei muito esse argumento nas outras missões de GLO. Parece que estão preocupados apenas com a visibilidade da violência. A sensação de segurança não está atrelada a maiores ou menores índices criminais. Grafite nos muros e baixa iluminação, por exemplo, podem afetar a sensação de segurança. A presença de militares pode fazer algumas pessoas se sentirem mais seguras e outras, não. Quanto à apreensão de drogas nos portos e aeroportos, isso é só a ponta do iceberg. É uma parte importante da política de coibir o tráfico de drogas internacional, e também a mais visível. Mas de nada adianta se não houver uma política mais complexa focada na parte invisível, que é investigar as próprias polícias e monitorar esquemas financeiros ilícitos. Além disso, há uma possibilidade de conflito de comando entre a cúpula dos militares e da Polícia Federal. A linha de mando nessa GLO não está clara e isso é extremamente necessário nessas operações interagências, por sua complexidade.
Existe uma relação entre a decretação dessa GLO e uma tentativa do governo de se aproximar dos militares após os atos golpistas de 8 de janeiro?
A GLO é justamente para tirar o foco da atenção para outra coisa, pois o emprego dos militares como polícia tem apelo popular. O governo está chamando os militares para nos salvar, como a população gosta de pensar. E em condições ainda melhores para as Forças Armadas, pois os militares não vão estar subindo uma favela trocando tiro com traficante e correndo o risco de matar um morador acidentalmente. Há, porém, o risco de corrupção, de expor os militares a oportunidades de envolvimento com o crime organizado, como já existe dentro das Forças Armadas. Para isso será necessário ter monitoramento e responsabilização da atuação dos militares nessa GLO. Mas, em geral, os louros para as Forças Armadas vão ser maiores, porque lhes dá uma visibilidade positiva. A gente voltou a falar das Forças Armadas e não tem a ver com 8 de janeiro, tem a ver com combate ao tráfico de drogas.
Qual é o problema disso?
Seria muito importante para o controle político das Forças Armadas que houvesse uma punição para os militares envolvidos no 8 de janeiro. No Brasil, é muito difícil punir militares. Em geral, as elites civis pactuam com eles. Tudo indica que não haverá punição. A política do governo Lula tem sido de apaziguamento com os interesses dos militares, mas eles estão com um alto grau de autonomia e muito politizados. Não me refiro ao atual comando das Forças Armadas, mas é claro que o efeito dos quatro anos do governo anterior sobre os militares não vai desaparecer magicamente. Eles estão sedentos por poder, e o governo resolveu dar alguma coisa para se manterem ocupados. A GLO vai justificar a modernização de armamentos e orçamentos militares mais robustos. O governo está varrendo a poeira para debaixo do tapete. Só que essa conta chega.
De que forma?
Se daqui a quatro anos a gente tiver uma nova crise política, teremos mais uma vez os militares querendo atuar como salvacionistas. É preciso despolitizar as Forças Armadas. Sem isso, o Brasil não conseguirá avançar como democracia. Todas as democracias liberais na Europa Ocidental passaram pelo processo de impor limites à participação dos militares na política. Eles precisam entender que não é seu papel ficar tuitando sobre política, divulgado comunicados, participando de eventos políticos. Ou engajando-se em outras formas mais diretas de intervenção na política, como se candidatar a um cargo de senador ou deputado. Não tem como pensar em consolidação da democracia brasileira sem o fortalecimento do controle civil sobre os militares.
A GLO mantém essa autonomia dos militares dentro do sistema político e lhes dá certa influência. A intervenção federal no Rio em 2018, por exemplo, deu visibilidade para o general Braga Netto e transformou-o em um político em ascensão. Além disso, uma GLO justifica mais gastos militares, o que contribui para a autonomia da corporação. A GLO no Alemão e na Penha chegou a custar mais ou menos 1 milhão de reais por dia — e foram quase dois anos de operação.
Esse dinheiro teria um efeito melhor se fosse empregado nas polícias?
Com certeza, porque estamos tapando o sol com a peneira. Lula e o ministro da Justiça Flávio Dino anunciaram a GLO como se fosse uma grande novidade. Desde os anos 90 as Forças Armadas são empregadas em GLO contra o crime organizado e os resultados são muito limitados em termos dos gastos e de dar uma solução duradoura. Uma hora os militares vão ter que sair, não podem fazer a segurança dos aeroportos para sempre. Quem vai continuar essa missão? A Polícia Federal está equipada? Como vai se dar a coordenação entre governo federal e estadual? Pois essa coordenação precisa se manter ao longo do tempo, não pode depender de um mando militar para ocorrer. É preciso modernizar as polícias. Não se fala em investigação do crime. Na prática, coibir o crime organizado não é algo tão midiático quanto uma GLO.
De que forma o envio de militares para as missões de paz contribuiu para a politização das Forças Armadas?
As operações de paz hoje são multidimensionais, ou seja, não consistem apenas em fazer papel de polícia. Implicam participar da reconstrução dos órgãos da sociedade, do tecido social. Os militares assumem um papel na mediação de conflitos, na coordenação com órgãos políticos e no contato com lideranças comunitárias. Eles se tornam administradores da vida pública. Os militares brasileiros ficaram no comando da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, criada em 2004) por mais de 10 anos. Isso lhes deu visibilidade e reputação, mas também experiência em missões que pouco têm a ver com o papel tradicional das Forças Armadas. Isso ajudou os militares a depois se colocarem como atores políticos no Brasil. O discurso internacional é o de que as operações servem para despolitizar os militares, pois eles se manterão ocupados longe de casa. Mas têm o efeito contrário.
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