Há reformas inacabadas e discussões incompletas
Por Matheus Piovesana, O Estado de S. Paulo, 03/07/2024
PEDRO MOREIRA SALLES, copresidente do conselho de admin. do Itaú Unibanco
Para o banqueiro, Plano Real foi um “momento extraordinário”, mas País precisa avançar.
O Plano Real foi o marco inicial do Sistema Financeiro Nacional de hoje na visão do copresidente do conselho de administração do Itaú Unibanco, Pedro Moreira Salles. O controle da inflação tornou o crédito a principal atividade do setor, sinalizando a entrada da economia em uma rota mais saudável do que a dos 15 anos anteriores. “Há um sistema financeiro pré-real e um sistema financeiro pós-real”, diz Moreira Salles, em entrevista ao Estadão/Broadcast. À época, ele era conselheiro do Unibanco, um dos maiores bancos privados do Brasil, e se tornaria presidente do banco em 2004. Em 2008, o Unibanco se fundiu ao Itaú, formando o Itaú Unibanco – que hoje é o maior banco da América Latina, com R$ 2,8 trilhões em ativos.
A consolidação foi o segundo efeito do plano sobre os bancos. O primeiro foi o fim do chamado lucro inflacionário, que os bancos obtinham através do rendimento das aplicações de depósitos dos clientes em ativos corrigidos pela inflação. Todos os bancos tiveram de reduzir custos e crescer no crédito para recuperar receitas, mas a falta de prática fez com que muitos tropeçassem.
“Ninguém sabia dar crédito, porque a inflação estava presente de forma doentia na economia”, afirma Moreira Salles. Para ele, o Plano Real “foi um momento extraordinário”, mas “temos reformas inacabadas e discussões incompletas, e elas são muito difíceis”. “Para o Brasil avançar, esse problema (das reformas) vai ter de ser enfrentado”, diz.
Na época do Plano Real, o sr. estava no conselho de administração do Unibanco. Como foi para o banco?
O Plano Real era o quinto que o banco enfrentava, havia alguma experiência. A diferença é que acreditávamos que havia um mecanismo que poderia resultar no sucesso do plano. Os outros tiveram vida curta, havia um cenário de inflações altas que, de repente, eram interrompidas. Isso gerava um problema nos bancos, que tentavam fazer ajustes, mas a inflação voltava. No caso do real, parecia que seria bem-sucedido porque havia o aprendizado do passado e porque, ao contrário dos outros, não houve congelamento de preços. Tudo foi anunciado, e a população entendeu. Mesmo em relação ao mecanismo de difícil compreensão, a URV, que era a indexação da moeda à própria moeda, a adaptação foi rápida e, em 1.º de julho de 1994, quando veio o plano, pareceu ter resiliência e permanência. O banco teve de se adaptar. Dizia-se que os bancos eram sócios da inflação, sócios involuntários, mas eles se ajustaram ao longo do tempo a conseguir receita pelo lado dos passivos, o famoso ‘float’. O grande sócio da inflação era o governo. Os bancos desenvolveram mecanismos de captação, e o residual não repassado de inflação fazia com que funcionassem. Quando acaba a inflação, perde-se a grande fonte de receita e tem de se olhar para o crédito. Muitos bancos tinham se fragilizado pelos vários planos, pela parada súbita da fonte de receita e pela tentativa de dar crédito. Ninguém sabia dar crédito, porque a inflação estava presente de forma doentia na economia. Como houve perda de receita, os bancos tiveram de ajustar o custo, e o banco fez um grande ajuste de estrutura, em que pese que já fizesse desde o Plano Cruzado. Alguns bancos chegaram ao Plano Real em melhor estado do que outros. Foi um choque de realidade grande para o sistema financeiro, e houve uma enorme consolidação. O real não era só uma reforma monetária, mas também uma tentativa de estancar caminhos de emissão de moeda. Os bancos estaduais eram um grande problema; então, foram encampados ou vendidos. Entre os seis maiores bancos privados, até 1996 três haviam sido absorvidos, fechados ou vendidos. Ficou claro que, para sermos competitivos e ficarmos no mercado, a consolidação era incontornável, e daí surgiram as conversas que, em 1995, resultaram na operação do Nacional.
Além da escala, o que o Nacional trouxe ao Unibanco?
O maior valor era a base de clientes, a escala. A dimensão dos bancos estava muito vinculada à rede de agências. O Nacional tinha mais ou menos o mesmo número de agências do Unibanco, então, dobramos a rede de uma hora para a outra. Em muitos lugares, havia sobreposição, mas em muitos outros, não. Nos tornamos o primeiro banco no Rio de Janeiro, mudamos muito nossa posição em São Paulo, e o Nacional tinha uma presença mais forte em Minas Gerais do que nós. O Nacional tinha um problema sério, que era a fraude: parte do crédito que estava no balanço não existia. Não era uma operação rentável. Sem a carteira de crédito fictícia, vieram títulos públicos. Logo, não havia margem. Reduzimos não só a rede de agências, mas o número de funcionários. A operação ao final rodava com cerca de 65% da soma original de pessoas.
Para além do crédito, quando vocês perceberam que o plano tinha dado certo?
Foi fácil entender que o plano era bem-sucedido do ponto de vista da estabilidade da moeda: passaram seis meses, nove, 12, e tudo caminhava na direção certa. E não tinha o truque do congelamento de preço, que tinha acontecido em todos os outros, ou, no caso do Plano Collor, uma enorme restrição de acesso à moeda. Nesses casos, em seis meses havia inflação de novo. O real não foi assim, mas colocou outros problemas. Ele dependia de uma âncora cambial, e havia dúvida se a inflação voltaria se fosse necessário soltar o câmbio, como aconteceu quase cinco anos depois. Mas a reforma foi muito além da moeda. Houve um enorme esforço de privatização, criação de agências reguladoras e, mais tarde, o tripé macroeconômico, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Lançaram-se as bases de um Estado muito mais moderno.
Então, o sr. diria que o real trouxe a consciência de que havia uma série de reformas que eram necessárias na economia?
Sem dúvida. Uma agenda ainda incompleta passados 30 anos, mas havia uma visão de que tipo de País iríamos construir, o papel do Estado dentro dele. Tinha a evidência da doença na inflação, e esse era o alvo. As circunstâncias foram muito particulares. Havia um departamento de Economia no Rio onde as pessoas se conheciam, discutiam a inflação sob uma ótica acadêmica. Alguns tinham participado de planos anteriores. O Fernando Henrique, ao virar ministro da Fazenda – e acho que o Persio Arida disse isso recentemente –, combinava uma coisa rara: era um intelectual que circulava nesse mundo, entendia quem estava discutindo o tema e como montar um time de primeiríssimo nível; e, ao mesmo tempo, era um político experimentado, que sabia que tinha de convencer o Congresso, formar maiorias. E o real resistiu. Passou por várias crises, pela necessidade de flutuar o câmbio, e ninguém sabia se a inflação voltaria. Via política monetária, já com Armínio Fraga no Banco Central, e o lançamento do tripé, das metas de inflação e a criação do Copom manteve-se a inflação em níveis relativamente baixos. Há um sistema financeiro pré-real e um sistema financeiro pósreal. Cresci vendo minha moeda mudar de nome, cortar zeros. Era uma loucura, e todo mundo estava anestesiado, não entendendo a natureza do problema, monetário e fiscal. Por isso, a privatização, a reforma do Estado, para gerar a percepção de que não haveria um problema de insolvência. Foi um momento extraordinário, da junção de pessoas muito particulares, muito técnicas, e de alguém com uma habilidade de comunicação política, que é o Fernando Henrique. É para festejar os 30 anos.
O sr. disse que tem uma parte do trabalho do plano que ainda não foi feita. O que faltou?
Faltou o que está todo dia nos jornais. Não é uma questão de Estado grande ou pequeno, mas, sim, de qual é o Estado eficiente que precisamos, como ele supre as enormes necessidades que o País tem do ponto de vista social, mas entendendo que há um tamanho certo. Tem de se buscar, como em qualquer ente econômico, um equilíbrio. Isso exige pensar o que é necessário e o que não é. Temos reformas inacabadas e discussões incompletas, e elas são muito difíceis. Mas, para o Brasil avançar, esse problema vai ter de ser enfrentado.
ARTIGO1206