Juscelino, esse menino-grande
Jornal do Brasil, 26/08/1976
Carlos Drummond de Andrade
Recordações pessoais de Juscelino Kubitschek tenho poucas, e todas agradáveis – a última, na galeria de arte de Ipanema, em noite de chuva grossa, quando Adélia Prado lançava o seu livro de poesia Bagagem. Juscelino apareceu lépido, como se emergisse de uma manhã de sol, e seu espírito se banhasse em claridade dourada. Ia cumprimentar a moça autora, mineira de Divinópolis, e, se fosse preciso, naquela noite molhada, correria ainda a muitos outros lugares, para distribuir com amigos, conhecidos, desconhecidos e brasileiros em geral, a sua cordialidade.
Uma cordialidade submetida a prova de fogo – pois sob o fogo de julgamento severo, de incompreensão e mesmo de injustiça, ele passou os últimos 12 anos de vida, sem que isso, ferindo-lhe o coração, lhe anuviasse o semblante e o comportamento. Poder-se-ia tentar explicar essa exterioridade pela característica do temperamento político, que se acomoda aos ventos contrários, à espera de melhores condições meteorológicas, mas tal explicação não basta para o caso. É preciso ter nascido com reservas inesgotáveis de coração para suportar o que ele, mais que nenhum outro, suportou, e manter vivo um sentimento de benevolência universal, que, mesmo coincidente com o interesse político de sobreviver e reconquistar posição de comando, conserva um fundo de pureza que me parece próximo da santidade ou, pelo menos, da infância.
Santo não foi Juscelino, está visto, mas suas atitudes públicas no infortúnio de sua incessante preocupação de infundir esperança e alegria, se podiam ser interpretadas como desejo de auto consolação e terapia de restauração íntima, tinham um valor de estímulo para os outros, desiludidos, perplexos ou frustrados em justas aspirações de normalidade democrática e justiça plena. Ele mostrava o que se pode fazer quando não nos deixam fazer o que queremos, ou, interpretam mal o que fizemos. Não apenas sorria, quando ninguém podia exigir dele que achasse tudo perfeito. Substituiu a ação política pela ação empresarial, e finalmente acudiu ao velho apelo da terra, que é uma voz de Minas ressoando onde quer que o mineiro dê com os costados. Mineiro como qualquer outro, sem embargo do sobrenome inabitual (mas de quantas partes do mundo vêm as raízes de nossa gente de montanha?), procurou na vida de fazendeiro goiano aquele ponto de fixação que, mantendo-nos integrados no corpo social, ao mesmo tempo nos distancia dele, proporcionando-nos a fruição do mistério fecundo do isolamento e da intimidade com as forças geradoras da natureza, latentes no solo, nos animais, nas plantas, no ar. Intimidade que nos enriquece moralmente, ao nos dispensar do contato com a dissipação das cidades, hoje geralmente monstruosas, e assim nos libertam de paixões corrosivas, acirradas pela luta urbana. A figura de Juscelino senhor de terras e culturas, na tradição de velhos modelos mineiros, comove-me como retrato final desse espírito aventureiro, que não se contentava com o mundo tal qual é, e ambicionava viver 50 anos à sua frente, num quadro estabelecido por sua imaginação criadora.
Foi um menino-grande que sonhou coisas, e que as realizou. Menino continuou, pelo gosto do risco, talvez mais forte que a aspiração ao Poder. O espírito lúdico, a fantasia inspiradora de projetos casavam-se nele a uma vontade que converte sonhos em formas concretas. Brasília era uma abstração constitucional, uma idéia-nuvem, que ninguém se atrevia a passar para o terreno das cogitações efetivas. Somos um país em que a rotina burocrática se revela impotente para trocar uma lâmpada queimada no poste – e a lâmpada queimada lá permanece como símbolo de conformismo e estagnação. Em ambiente dessa ordem, tirar do cerrado uma cidade inteira, com todo o fulgor de arte e tecnologia, definidor da nova Capital – e com algo de mirabolante e mileumanoitesco, também – é proeza que excede a dimensão humana do nosso aparelho público. Desperta assombro, entusiasmo, fanatismo, indignação, admiração – e uma consciência feliz de que afinal somos capazes de grandes coisas, mesmo sujeitas a controvérsia. E consagra para sempre o louco manso que a empreendeu: esse menino de Diamantina que se manteve intato no homem JK.
Não fui dos que o levaram à Presidência da República pelo endosso do meu voto, e me permiti, mesmo, sorrir em verso e prosa da chuva incontida de suas metas desenvolvimentistas. Isso não impediu que sentisse por ele essa fascinação que nos inspiram os mágicos, as crianças inventivas, os homens que jamais conheceram o rancor e que abrem para a vida olhos de confiança e de alegria. Este entra na História, fatalmente – e com um halo de generosa simpatia.
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