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Legado de Rui Barbosa continua atual um século após sua morte

STF fortalecido e até o modelo atual de campanha eleitoral ecoam conceitos do jurista e político baiano.

WILSON TOSTA RAYANDERSON GUERRA, O Estado de S. Paulo, 27 Feb 2023

Um século após a morte de Rui Barbosa (1849-1923), completado na quarta, 1.º de março, as influências, ainda que difusas, do pensamento do jurista, jornalista e político continuam presentes no Brasil atual. A ideia do Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião da Constituição, a disputa entre a Corte e os militares pelo papel de Poder Moderador, a campanha eleitoral como conhecemos hoje e até ações como a da Operação Lava Jato estariam nesse rol. Mesmo a cobertura da política pela imprensa mudou pós-Rui, sobretudo depois da campanha eleitoral de 1909/1910, chamada de Civilista e apoiada por intelectuais, entre eles, Julio Mesquita, fundador do Estadão.

“Metade do que está acontecendo é Rui Barbosa”, diz o cientista político Christian Lynch, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa. “STF, Poder Moderador, essa brigalhada toda começa com Rui.”

O político que teve cinco mandatos no Senado pela Bahia talvez não se surpreendesse se pudesse saber que um busto que o representa foi vandalizado pelos golpistas de 8 de janeiro de 2023 e virou uma espécie de símbolo da brutalidade na política que exalta o militarismo e o uso da força que o baiano, na retórica e na prática, combateu.

Rui defendeu democracia e direitos para todos, ainda que para um eleitorado que era uma fração muito pequena da população. A legislação excluía do voto mulheres e analfabetos – a maioria dos brasileiros. Mesmo assim, ele parece ter aberto caminhos que chegam ao Brasil de 2023. “A Campanha Civilista foi a primeira campanha eleitoral para valer, com apoio da opinião pública liberal, e a primeira razoavelmente competitiva”, diz Lynch, para quem Rui queria dar um “choque elétrico” na opinião pública.

 

CAMPANHA INÉDITA. Até a campanha de 1909/1910, os presidentes eram candidatos únicos, escolhidos em um conchavo da oligarquia e consagrados com mais de 90% dos votos.

Foi assim até chegar a vez do marechal Hermes da Fonseca, que tinha o apoio da maioria das elites. Rui resolveu enfrentá-lo em uma campanha eleitoral “à americana”. Foi às ruas falar com eleitores, fez duas longas viagens de trem, por São Paulo e Minas, e foi de navio à Bahia. Parava nas estações, onde discursava para os eleitores. Também novidade foi a cobertura da imprensa. Muitos jornais, inclusive o Estadão, apoiavam o candidato.

“A Campanha Civilista foi o início do fotojornalismo como narrativa no Brasil”, afirma Soraia Farias Reolon, pesquisadora do Setor Ruiano da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em 3 de março de 1910, Hermes da Fonseca obteve 403.867 votos, ante 222.822 de Rui – aproximadamente 64% a 36%.

 

EXÉRCITO. Rui poderia até ter razões pessoais para sair candidato, mas viu em Hermes o espectro da volta do florianismo. Era uma corrente autoritária que espancava opositores e fuzilava quem se rebelasse. Nessa disposição para destruir os adversários, vistos como inimigos, também é possível identificar semelhanças com o Brasil atual.

O nome de Rui seria votado em outros pleitos, mas só em 1919 voltou a concorrer a sério. Com 116.414 (uns 30% da votação), perdeu para Epitácio Pessoa (286.373). Nessa disputa, o enfoque foi outro. Pregou a necessidade de leis sociais, com uma plataforma “à esquerda” para o País na época. “Foi a primeira vez que alguém do establishment falou da questão social no Brasil”, destaca Lynch.

 

STF E JUDICIARISMO. Depois de aprovar o projeto de separação da Igreja do Estado, Rui foi eleito senador constituinte pela Bahia. Sua ação foi crítica na redação da primeira Constituição republicana, na qual optou pelo regime presidencialista e federalista. Também no texto fortaleceu o Poder Judiciário e o STF.

Esse fortalecimento do Supremo deu espaço, na visão de alguns pesquisadores, ao “judiciarismo” – outro nome para o “ativismo judicial”. Seus objetivos seriam garantir a Constituição e o estado democrático de direito contra as oligarquias e o autoritarismo. Repercussões dessa concepção chegaram até a Operação Lava Jato tocada pela Procuradoria-Geral da República sob o comando de Rodrigo Janot, com a chancela do STF.

 

CONTRADIÇÕES. O mesmo Rui que criticaria a ação das elites foi o principal redator da Lei Saraiva, editada em 1881, que reformou o sistema eleitoral. Manteve a exigência de renda mínima para votar e eliminou o voto dos analfabetos. Admitiu, porém, que ex-escravizados libertos, estrangeiros naturalizados e não católicos votassem. Foi, disse ele, “o liberalismo possível”.

Críticos de Rui apontam como nociva sua ação como ministro da Fazenda, quando estimulou emissões de moeda. O “Encilhamento” seguiu concepções que equivaleriam hoje ao desenvolvimentismo. Gerou uma crise econômica inflacionária. Outro motivo de críticas envolve sua ordem para destruir documentos relativos à escravidão. Defensores argumentam que o objetivo seria inviabilizar pedidos de indenização dos exsenhores de escravos.

Os defensores preferem lembrar de outro Rui. Falam do polímata com vasta cultura. Referem-se ao chefe da delegação brasileira na Conferência de Haia, em 1907, na qual defendeu a igualdade jurídica das nações. Lembram ainda o Rui que apresentou habeas corpus em favor de presos sob o florianismo, com os riscos até físicos que isso implicava.

A pioneira campanha de 1910 ajudou a fixar essa imagem um tanto quixotesca do baiano. Foi assim que Carlos Drummond de Andrade o recordou no Jornal do Brasil, em 1.º de março de 1973, na crônica Rui, naquele tempo. “De 1910 a 1914, o Brasil teve dois presidentes. Um de fato e outro de consciência, entre seus livros e papéis da Rua São Clemente, e daí para a tribuna do Senado ou perante o Supremo Tribunal Federal, postulando, verberando, exigindo o cumprimento da lei, já menos como político do que como defensor dos direitos humanos.”

ARTIGO913

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