Marcos Nobre: ‘STF tomou ação efetiva para barrar projeto autoritário’
Presidente do Cebrap diz que saída para crise política exige negociação com as Forças Armadas e o vice Hamilton Mourão
Entrevista com Marcos Nobre, presidente do Cebrap
Guilherme Evelin, O Estado de S.Paulo – 01 de junho de 2020 | 05h00
Para o cientista social Marcos Nobre, professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a fidelidade do presidente Jair Bolsonaro a suas “convicções autoritárias” o levaram a instituir um “governo de guerra” durante a pandemia do coronavírus e provocar a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. Nobre acaba de lançar o e-book “Ponto Final- A Guerra de Bolsonaro contra a democracia” (Editora Todavia, 80 páginas, R$ 30,00), com um diagnóstico e propostas de saída para a crise institucional brasileira.
Segundo ele, a ação do Supremo Tribunal Federal (STF) contra integrantes do chamado “gabinete do ódio”, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, foi a reação mais efetiva tomada pelas instituições, até aqui, para barrar esse “projeto autoritário”. Nobre diz também que não há saída democrática sem uma negociação com as Forças Armadas e o vice-presidente Hamilton Mourão. “Ponto Final” é uma alusão a uma das expressões favoritas de Bolsonaro e também ao nome de uma lei de 1986 na Argentina que pretendeu, mas não conseguiu, interromper processos que levaram à prisão agentes da ditadura no país vizinho.
No livro, o senhor sustenta que o presidente Jair Bolsonaro segue uma lógica política racional e que o método dele é caos. Que lógica é essa?
Todas as reações de Bolsonaro à pandemia têm a ver com a fidelidade dele a suas convicções autoritárias. Nisso, ele é um político. Normalmente, no início, políticos autoritários não são levados a sério. São tomados como bufões, burros, loucos até que fazem o estrago quando conseguem implantar o autoritarismo que perseguem. Chamá-lo de burro ou louco reforça o Bolsonaro, na medida que o projeto dele é desobrigar as pessoas de pensar. Também o desresponsabiliza, porque um burro ou um louco não é responsável pelos seus atos. Por fim, reforça a imagem que o Bolsonaro tenta passar de ser um não-político. Eu tento demonstrar no livro que ele segue uma racionalidade política, mas tétrica. A gente precisa fazer um esforço para entender essa racionalidade para tentar combatê-la.
Que racionalidade orientou o presidente a instituir o que é caracterizado no livro como um “governo de guerra”, em vez de um “governo de união nacional”, como fizeram líderes de outros países?
Bolsonaro não fez isso porque ele se elegeu como um líder antissistema. E, como todo líder antissistema autoritário, o objetivo dele é destruir o sistema, e não geri-lo. Uma característica importante do Bolsonaro é que, para ele, o sistema é a mesma coisa que a democracia. O sistema, para ele, é de “esquerda”; a democracia é de “esquerda”. Para ele, a verdadeira democracia é a democracia da ditadura militar. Esse é o paradoxo para tentar entender o vocabulário dele na reunião ministerial de 22 de abril. Quando ele diz que quer livrar o Brasil da ditadura, o que ele quer dizer é que quer livrar o Brasil da esquerda, do sistema e da democracia. Quando surge a pandemia, você precisa gerir o sistema como se estivesse numa situação de guerra, reorganizar os ministérios, a produção industrial, fazer um plano que envolva todos os poderes. Mas, se ele fizesse isso, ele abriria mão do seu projeto autoritário que estava só no início até a chegada da pandemia. Na minha leitura, o primeiro mandato seria de destruição das instituições democráticas. Num segundo mandato, ele iria implantar, de fato, o autoritarismo.
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal desencadeou uma operação da Polícia Federal, como parte do inquérito sobre “fake news”, contra integrantes do chamado “gabinete do ódio”. Qual é a eficácia desse tipo de ação por parte das instituições, já que ela faz parte de uma investigação controversa, desde o seu início, num período que o senhor caracteriza no livro como de “colapso institucional”?
Uma instituição estar em colapso não significa que ela não está funcionando. Quando a gente diz que o sistema de saúde está em colapso, a gente não quer dizer que ele não está funcionando. Pelo contrário, está funcionando em condições extremas. E, muitas vezes, funcionando de maneira disfuncional, sem cumprir os seus objetivos. O inquérito das fake news é um exemplo perfeito para demonstrar esse colapso institucional. Na sua origem, esse inquérito foi classificado, quase unanimemente entre os juristas, como algo inédito e sem amparo na legislação. Isso é um indício de colapso institucional. Mas o colapso maior ocorre quando Bolsonaro tenta se apossar da Polícia Federal, com a ideia de que um órgão de Estado é um instrumento do governante. O ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro a tomar uma atitude efetiva para barrar o projeto autoritário de Bolsonaro. Foi o primeiro que não fez nota de repúdio, manifesto, reunião virtual e agiu para atingir um pilar de sustentação de Bolsonaro, que é essa rede de desinformação, calúnia e difamação que sustenta uma boa parte da base dele. O ministro Alexandre de Moraes foi direto na ferida e usou mecanismos institucionais para combater um Estado que é de absoluta anormalidade. Nós não podemos combater com armas normais uma situação anormal. Não tem nada normal funcionando, mas é importante ter feito isso, principalmente num momento em que Bolsonaro resolve fazer um governo de guerra.
Depois da ação do STF, Bolsonaro elevou a retórica de confrontação, disse que não iria cumprir “ordens absurdas” e o filho dele, Eduardo, disse que haverá uma ruptura institucional. Como avalia a possibilidade de haver essa ruptura institucional
Nessa escalada retórica, há um lado simplesmente diversionista, que é tirar o foco da pandemia, porque Bolsonaro sabe que vai ser responsabilizado pela falta de resposta do País, pela recessão econômica e pelo agravamento das duas pela crise política que ele produziu. O outro lado é: qual é a probabilidade de isso acontecer? No momento, como golpe organizado, ainda parece baixa. Isso não impede que haja atos descoordenados e isolados por parte de uma base fanática de Bolsonaro, armada e militarista.
O senhor se refere no livro à grande presença de militares em funções na máquina pública federal como um “partido militar”, que ajuda a vertebrar o governo, pela falta de partido e quadros do bolsonarismo. Como vê o papel das Forças Armadas diante das ameaças de ruptura institucional proclamadas pela família Bolsonaro?
A questão dos militares é complexa porque ela é uma questão histórica no Brasil. A pandemia interrompeu um movimento do Bolsonaro, que tinha começado no Ceará, com um motim da PM, para fazer uma organização nacional das polícias militares, cujo objetivo era confrontar as Forças Armadas ou chantageá-las para segui-lo rumo a um regime autoritário. Quanto à parte dos militares que aceitou ir para o governo, seja da ativa ou da reserva, isso representa um movimento que é ansiado, há muito tempo, por eles, que participam da vida política brasileira desde a proclamação da República. Os militares sentiram que, após a redemocratização, foram alijados e excluídos dos círculos de decisão política por 35 anos. Então, qual foi a estratégia das Forças Armadas? Primeiro, foi recuperar sua imagem, que estava muito desgastada no final da ditadura militar. Em segundo lugar, foi apostar e investir muito em formação, especialmente das patentes superiores. Há uma parte relevante das Forças Armadas que diz que os militares querem participar de governos civis, democráticos, como quaisquer outros integrantes de instituições de Estado. Isso é uma parte dos militares, que se adaptou à democracia. É claro que tem uma parte que não concorda com isso e que acha que o período do regime militar é o melhor modelo para o País. Os militares não são um bloco unitário. É preciso a gente pensar nessas divisões internas porque não haverá solução para afastar o risco autoritário representado por Bolsonaro sem uma negociação com as Forças Armadas. Não há também uma saída sem que ela passe pelo vice-presidente, Hamilton Mourão.
Pesquisas recentes mostram que Bolsonaro, apesar da saída de Sérgio Moro do governo, continua a conservar o apoio de cerca de um terço da população. A estratégia de guerra de Bolsonaro pode estar dando certo?
Desde o início do governo Bolsonaro, houve uma divisão do eleitorado em três terços: um terço de aprovação, um terço de rejeição e um terço que nem aprova nem rejeita. Isso levava a uma lógica que imobilizava a política brasileira, porque nenhum dos terços conversava com outro ou tentava roubar votos do outro. Cada terço só fazia esforço para fidelizar seu próprio terço. Isso era algo que estava levando Bolsonaro à reeleição porque ele vive também da divisão do campo democrático. As pesquisas mostram que foi rompida essa lógica, porque houve um aumento da rejeição a Bolsonaro e uma diminuição da parcela que não o aprova nem o rejeita. Acho que isso é uma tendência e que o apoio a Bolsonaro tende a se reduzir ao núcleo mais fanático. Ele é um presidente que caminha para a inviabilidade. O governo de guerra está servindo para ganhar tempo. Enquanto todo mundo está em isolamento, com as pessoas com dificuldades para se organizar e ir às ruas, ele parece ser o único homem livre num país de confinados. Ele está ganhando tempo, em cima de uma pilha de cadáveres, para negociar com o Centrão na Câmara para que não seja aberto um processo de impeachment.
Quão firme é o apoio do Centrão?
O Centrão apoia qualquer governo até que esse governo se inviabilize. Se se formar uma esmagadora maioria na sociedade brasileira a favor do afastamento de Bolsonaro e não houver uma base firme para segurá-lo, o Centrão abandonará Bolsonaro. Especialmente, o ‘Centrão Carcará’, o que pega, mata e come. Ainda que o governo se inviabilize em seis meses, o pensamento deles, sempre de curtíssimo prazo, pode ser resumido assim: “eu vou aproveitar esses cargos, esses fundos para usar nas eleições municipais. Se o governo se inviabilizar, a gente muda, derruba o presidente porque o próximo vai precisar da gente. Estamos aí à disposição”.
O senhor diz que ainda não é o momento de impeachment. Quais são as condições para que ele ocorra?
Há várias razões imediatas para o impeachment de Bolsonaro, mas a questão é se ele é viável. Um impeachment para tirar uma pessoa não vai resolver o nosso problema estrutural. É preciso fazer um processo de impeachment que seja um instrumento de regeneração da democracia, das instituições, da convivência e da competição política. As condições para esse impeachment regenerador são muito exigentes. Forças políticas que se atacaram de uma maneira destrutiva nos últimos anos têm de sentar, conversar e negociar questões de procedimento político e substantivas de conteúdo. Não só há muita mágoa em todos os lados e diferenças brutais, como estamos com dificuldade de comunicação. Há divisões também eleitorais por causa das eleições municipais. É muito difícil essa negociação, mas ela é possível. O impeachment é uma construção, não pode ser só a decisão de um grupo. Se não houver essa ampla concertação, vai ser jogar gasolina da fogueira do caos que Bolsonaro constrói cotidianamente. Essa construção já começou de forma tímida, incipiente. Está faltando a clareza de que o Bolsonaro vai se inviabilizar. Essa clareza só se vai dar quando uma esmagadora maioria da sociedade passar a rejeitá-lo. O sistema político está esperando ser empurrado pela sociedade para isso. A questão é se vão sentar para negociar isso de maneira séria – e não apenas eleitoral. Se for um negócio meramente eleitoral, não vamos sair do buraco. Isso significa o seguinte: o campo da esquerda tem dizer para o da direita que, se não houver essa repactuação, ela pode até ganhar a eleição em 2022, mas não vai governar. E vice-versa. Bolsonaro consegue se manter onde está, como está, porque o Pais é ingovernável com as instituições que temos e a lógica de guerra que tomou conta da política. Foi a essa ingovernabilidade que Bolsonaro respondeu como líder antissistema, que, desde o começo, se recusou a governar. Ou a gente repactua, ou vai continuar numa crise permanente.
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