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Milton Friedman errou sobre as SA

Os problemas com o poder econômico, social e político são enormes

Por Martin Wolf – Valor Econômico – 09/12/2020

Qual deveria ser a meta da sociedade anônima comercial? Por muito tempo, a visão predominante nos países anglófonos e, cada vez mais, nos demais foi a desenvolvida pelo economista Milton Friedman em artigo publicado no jornal “The New York Times” intitulado “The Social Responsibility of Business is to Increase Its Profits” (“A Responsabilidade Social da Empresa é Aumentar Seus Lucros”), publicado em setembro de 1970. Eu também acreditava nisso. Eu estava errado.

O artigo merece ser lido na íntegra. Mas seu cerne está em sua conclusão: “Há uma e apenas uma responsabilidade social da empresa – usar seus recursos e se dedicar a atividades voltadas para aumentar seus lucros desde que se mantenha no âmbito das regras do jogo, isto é, desde que se dedique à competição aberta e livre sem ludibriar ou praticar fraudes”. As implicações dessa posição são simples e claras. Essa é sua principal virtude. Mas, como supostamente teria dito H L Mencken (embora possa não ter feito), “para cada problema complexo há uma resposta clara, simples e errada”. Este é um poderoso exemplo dessa verdade.

Há muito a discutir sobre como as sociedades anônimas deveriam mudar. O maior problema é criar boas regras do jogo sobre competição, trabalho, meio ambiente, taxação etc. O desafio é criar boas regras do jogo, por meio da política. Atualmente, não conseguimos fazer isso

Cinquenta anos depois, essa doutrina precisa ser reavaliada. Adequadamente, dada a ligação de Friedman com a Universidade de Chicago, o Stigler Center, por meio de sua Faculdade de Negócios Booth, acaba de publicar um livro eletrônico, “Milton Friedman 50 Years Later”, que contém diferentes pontos de vista. Em excelente artigo de conclusão Luigi Zingales, que promoveu o debate, tenta fazer uma avaliação equilibrada. Mas, na minha opinião, sua análise é devastadora. Ele formula uma pergunta simples: “Sob quais condições é socialmente eficiente para diretores se concentrar apenas em maximizar o valor acionário da empresa?” Sua resposta se divide em três partes: “Em primeiro lugar, as empresas deveriam operar em um ambiente competitivo, que eu definirei como as empresas serem ao mesmo tempo receptoras de preços e de regras. Em segundo lugar, elas não deveriam ser externalidades (ou o governo deveria ser capaz de enfrentar perfeitamente essas externalidades por meio da regulação e da taxação). Em terceiro lugar, os contratos são perfeitos, no sentido de que conseguimos especificar em um contrato todas as contingências relevantes sem qualquer custo.”

É desnecessário dizer que nenhuma dessas condições se sustenta. Na verdade, a existência da sociedade anônima mostra que elas não se sustentam. A invenção da sociedade anônima permitiu a criação de entidades gigantescas, a fim de explorar economias de escala. Em vista de sua escala, o conceito de empresas como receptoras de preços é absurdo. As externalidades, algumas delas mundiais, são, evidentemente, dominantes. As sociedades anônimas também existem porque os contratos são incompletos. Se fosse possível formular contratos que especificassem todas as eventualidades, a capacidade da direção de reagir ao inesperado seria redundante. Sobretudo, as sociedades anônimas não são receptoras de regras, e sim, formuladoras de regras. Jogam de acordo com regras em cuja criação tiveram grande participação, por meio da política.

Minha contribuição enfatiza esse último ponto ao perguntar qual a forma a ser assumida por um bom “jogo”. “É um jogo”, argumento, “no qual as empresas não promoveriam ciência de quinta categoria sobre o clima e o meio ambiente; é um jogo no qual as empresas não matariam centenas de milhares de pessoas, ao promover dependência a narcóticos; é um jogo no qual as empresas não fariam lobby em favor de sistemas fiscais que lhes permitem depositar grandes parcelas de seus lucros em paraísos fiscais; é um jogo no qual o setor financeiro não faria lobby em favor de capitalização inadequada que causa enormes crises; é um jogo no qual o direito autoral não seria interminavelmente prorrogado; é um jogo no qual as empresas não tentariam castrar uma política competitiva eficaz; é um jogo onde as empresas não fariam lobby contra esforços destinados a limitar as consequências sociais adversas do trabalho precarizado; e assim por diante.”

É verdade, como argumentam muitos dos autores dessa coletânea, que a sociedade anônima comercial de responsabilidade limitada era (e é) uma brilhante inovação institucional. Quando os dirigentes empresariais nos dizem que agora vão atender as necessidades mais amplas da sociedade, pergunto: primeiro, se acredito que vão fazer isso; segundo, se acredito que sabem como fazer isso; e, por último, quem as escolheu para fazer isso.

Mas os problemas com o poder econômico, social e político brutalmente desequilibrado na atual situação são enormes. Sobre isso, a contribuição de Anat Admati, da Universidade de Stanford, é irrefutável. Ela observa que as sociedades anônimas obtiveram uma série de direitos políticos e civis, mas não têm as obrigações correspondentes. Entre outras coisas, as pessoas raramente são consideradas penalmente imputáveis por crimes corporativos. A Purdue Pharma, em processo de falência, se declarou culpada de acusações penais por seu manejo do analgésico OxyContin, que causou dependência de muitas pessoas. Os indivíduos são rotineiramente detidos por traficar drogas ilegais, mas, como ela destaca, “nenhum indivíduo da Purdue foi para a cadeia”.

Especialmente, o poder desenfreado das sociedades anônimas é um dos fatores que estão por trás da ascensão do populismo. Pensemos como alguém convence pessoas a aceitar as ideias econômicas libertárias de Friedman. Em uma democracia de sufrágio universal, isso é verdadeiramente difícil. Para vencer, os libertários têm de se aliar com causas subsidiárias guerras culturais, racismo, misoginia, nativismo, xenofobia e nacionalismo. Boa parte disso foi, naturalmente, incorporada em voz baixa e, portanto, é, plausivelmente, negável.

A crise financeira de 2008, e o pacote financeiro que se seguiu em socorro daqueles cujo comportamento a causou, fez com que se tornasse ainda mais difícil defender um livre mercado desregulamentado. Assim, tornou-se politicamente essencial para os libertários dobrar a aposta nessas causas subsidiárias. Trump não era a pessoa que eles queriam: ele era inconstante e sem princípios, mas era o empreendedor político mais adequado para conquistar a Presidência. Ele lhes deu o que eles mais queriam: reduções de impostos e desregulamentação.

Há muito a discutir sobre como as sociedades anônimas deveriam mudar. Mas o maior problema é como criar boas regras do jogo sobre competição, trabalho, meio ambiente, taxação etc. Friedman pressupôs que nada disso tem importância. Nenhum desses pressupostos se revelou acertado. O desafio é criar boas regras do jogo, por meio da política. Atualmente, não conseguimos fazer isso. (Tradução de Rachel Warszawski)

Martin Wolf é editor e principal analista econômico do Financial Times

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