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Não é a economia…

*Antonio Delfim Netto – Valor Econômico – 16/01/2018

Em 1948, existia na FEA-USP a cadeira Instituições de Direito Público, ministrada por um competente professor, o dr. Geraldo Campos Moreira. Cuidava de como o “constitucionalismo” nas sociedades modernas tentava acomodar dois valores importantes, desejados pelos homens, a “liberdade” e a “igualdade”, que não são inteiramente compatíveis. Se o valor preferido for a “liberdade”, uma “democracia liberal” controlada por um colegiado sacralizado poderá dar conta do recado. Se o valor prevalecente for a “igualdade”, a solução provavelmente exigirá uma “democracia autoritária” sob a guarda do chefe de Estado que representa o “povo”. Essa lição septuagenária do professor Moreira (sobre Carl Schmitt e Hans Kelsen) merece uma análise atualizada de algum constitucionalista contemporâneo. No fundo, bem no fundo, a divergência que hoje divide a sociedade brasileira reflete as diferenças entre aqueles que procuram um consenso majoritário produzido pela “democracia liberal”, dão ênfase à “liberdade” e deixam a “igualdade de oportunidades” para políticas públicas adequadas, e outros que insistem na imediata “igualdade” e deixam a acomodação da liberdade “residual” que for possível dentro de uma “democracia autoritária”. Cassamos do Executivo a sua capacidade de administrar o pais Ninguém viu melhor do que Alexis de Tocqueville as extraordinárias promessas civilizatórias implícitas no cada vez mais abrangente “sufrágio universal” e, também, o perigo nele escondido: a possibilidade de a maioria constranger a minoria. Ele antecipou, aliás, que essa tirania se exerceria através das burocracias que controlariam o Estado. A história recepcionou tal narrativa: todas as “revoluções” que procuraram a “igualdade” terminaram em excessos que produziram o despotismo burocrático e a eliminação da liberdade individual, mesmo quando proporcionaram alguns serviços públicos universais em níveis modestos. Para poder realizar-se com a liberdade e a igualdade relativas, o homem precisa, primeiro, garantir a sua sobrevivência material: quanto menos tempo gastar com ela, maior o tempo sobrante para realizar a sua “humanidade”. Pois bem, num processo de seleção histórica, o homem “descobriu” um mecanismo que permitia coordenar sua habilidade produtiva com a multiplicidade de suas necessidades: os “mercados”, que combinavam “liberdade” e “igualdade” relativas. Desde tempos imemoriais percebeu-se que a divisão do trabalho permitia a diversificação da “oferta” (“nas feiras”) e o encontro de “relações de troca” (preços) entre o bem que cada um produz e a multitude de bens de que necessita. É evidente que essa “coordenação” fundamental exige “ordem”, ou seja, um “poder” capaz de garantir a propriedade “privada” e dar segurança às transações. Desde a sua “origem”, portanto, o “mercado” exigiu algum Estado! A enorme contribuição dos economistas foi sofisticar o funcionamento dos “mercados” nas sociedades complexas e reconhecer que, ao exigir a propriedade “privada”, eles estimulam as desigualdades e, por isso, devem ser bem regulados. O “mercado” é, apenas, um instrumento eficiente e útil cercado de mitos criados pela ideologia. A história confirma que todos os processos de crescimento civilizatórios relativamente bem-sucedidos que conhecemos (não mais que 30 países) procuraram acomodar o máximo de liberdade individual (empiricamente, o fator mais relevante para o crescimento econômico) compatível com a procura permanente da igualdade de oportunidade. A “malaise”, a crise que hoje se abate sobre eles, tem origem na desregulação dos mercados financeiros dos anos 80 do século passado, que aumentou a desigualdade. O momento vivido pela sociedade brasileira é de profunda preocupação. O sentimento de insegurança econômica aprofunda-se pela sensação de que ela atingiu a própria sobrevivência pessoal. O Estado institucional parece incapaz de cumprir o seu papel mais elementar: garantir a integridade física do cidadão. A confusão é geral. A “ordem” que deveria ser obtida pela separação dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), pelo respeito ao devido processo legal e às liberdades individuais, sob o controle do Supremo Tribunal Federal, parece produzir a “desordem”, pelo abuso de poder de instituições que deveriam ser independentes, mas harmônicas e reciprocamente controladas. Resumindo: levamos tão longe a “judicialização da política”, a “politização da justiça”, e ignoramos a absoluta necessidade de dar segurança jurídica, que cassamos do Poder Executivo a sua capacidade de administrar o país.

O ano de 2018 pode ser o da redenção, se a cidadania afastar-se das soluções “mágicas”. Temos nove meses para convencer uma maioria para que eleja um presidente com mandato para devolver ao país o caminho do crescimento inclusivo e sustentável, o que exige um caráter determinado, tolerante e com “sabedoria” amadurecida na paciência da transição, e não da transação. Não se trata da economia. Trata- se de restabelecer a funcionalidade da Constituição de 88, recuperando a independência, a harmonia e o autocontrole dos Poderes da República, hoje conflagrados e que tornam o país inadministrável!

*Antonio Delfim Netto é economista e professor. Formou-se, em 1951, pela Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo (USP). Foi secretário de Finanças de São Paulo, ministro da Fazenda, ministro da Agricultura, ministro-chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República e embaixador do Brasil na França. Participou da elaboração da Constituição de 1988. É professor-emérito da FEA e sua área de especialidade é economia brasileira.

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