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O papel do poder público no saneamento

É no atendimento às localidades mais carentes que este papel é mais indispensável.

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo – 21 de outubro de 2020

Por consenso geral, em que pesem os protestos de grupos de interesse corporativos e facções políticas retrógradas, o novo marco do saneamento é um extraordinário avanço num setor que, mais do que nenhum outro, expõe as desigualdades do Brasil. São quase 100 milhões de brasileiros (47% da população) sem acesso à coleta de esgoto e 35 milhões sem água tratada.

Entre as muitas inovações do marco, destacam-se três. Primeiro, a centralização da regulação na esfera federal, cabendo à Agência Nacional de Águas (ANA) uniformizar as normas atualmente pulverizadas entre milhares de municípios. Em segundo lugar, a exigência de licitação e da adesão a metas para fechar novos contratos ou renovar os vigentes. Por fim, a possibilidade da montagem de blocos regionais de municípios.

Tais mudanças devem garantir, a um tempo, mais segurança jurídica e mais competitividade, ajudando a atrair investimentos e promover a eficiência e a universalização do saneamento. A terceira, em particular, tem o intuito de proporcionar ganhos de escala e viabilizar o saneamento em pequenos municípios, compensando suas carências técnicas, administrativas e financeiras. Seguindo um modelo já aplicado, por exemplo, na concessão de rodovias, a ideia é combinar num único bloco localidades rentáveis e deficitárias, de maneira que as primeiras subsidiem, em alguma medida, a implementação e gestão da infraestrutura nas segundas.

Do ponto de vista social, é preciso especial atenção a este mecanismo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alerta para a situação fiscal delicada dos muitos municípios endividados e com limitações para investir. Segundo Gesmar dos Santos, um dos responsáveis pela pesquisa, historicamente “não há regularidade nos aportes municipais para as melhorias traçadas no Plano Nacional de Saneamento Básico. Enquanto essas lacunas orçamentárias não forem preenchidas, haverá entraves para o progresso no setor”.

Um dos problemas que precisarão ser enfrentados pela ANA e pelo Ministério de Desenvolvimento Regional na regulação dos blocos regionais é a função das tarifas. Elas servirão apenas para sustentar a operação ou serão previstas também para financiar investimentos? Tarifas demasiado baixas podem inviabilizar o negócio para as empresas prestadoras de serviços. Por outro lado, tarifas demasiado altas podem impactar a renda e o bem-estar dos cidadãos. O equilíbrio dependerá de uma sintonia fina entre a legislação setorial e arranjos político-administrativos complexos.

Os municípios com maior déficit, a zona rural e a população vulnerável exigem particular apoio do poder público. Como destaca o Ipea, além de uma reforma tributária consistente que aumente a capacidade de arrecadação e investimento municipal, a União precisa priorizar investimentos nessas localidades.

Do ponto de vista das empresas, é preciso considerar os mecanismos de ajuda estatal vigentes, como, por exemplo, as garantias à tomada de financiamento; as isenções de tributos (sobre o consumo de energia no saneamento, sobre a aquisição de equipamentos e produtos e outros); ou a ajuda em projetos e financiamentos impositivos ligados à abertura de capital. Do ponto de vista do consumidor, um dispositivo importante para alcançar a população mais pobre é a tarifa social, pela qual os pequenos consumidores pagam taxas reduzidas. Contudo, esse mecanismo solidário ainda pode ser aprimorado e expandido. Um levantamento do Ministério de Desenvolvimento Regional aponta que entre 34 concessionárias pesquisadas, apenas 13 praticam essa tarifa. Segundo o Ipea, “há necessidade de definição de formato, responsabilidades, fiscalização e análise dos efeitos dos subsídios – tanto para os cidadãos quanto para as empresas, sejam elas públicas ou privadas”.

Se a proposta do novo marco é, por meio de uma boa regulamentação pública, promover a participação da iniciativa privada no setor, é no atendimento aos municípios e comunidades mais carentes que se faz indispensável o maior protagonismo do poder público.

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