O sal da terra
Gandhi praticamente ganhou a independência da Índia por causa do grãozinho branco
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo – 22 de julho de 2020 | 03h00
Olhe na sua despensa, em um recipiente ao lado do fogão ou em sua mesa. Lá está um pequeno grão branco, única rocha mineral que comemos regularmente. É o sal. Há tamanha abundância de sal que não nos damos conta de que vivemos e morremos em função dele, há milênios.
Não sabemos quando ou o porquê de termos começado a ingerir sal. Realmente me impressiona imaginar um humano, sem nunca ter provado sal e, olhando uma pedra porosa, resolveu pôr aquilo na boca. O sabor é forte, especialmente em grande quantidade. Na Biologia, existem vários animais que sentem necessidade fisiológica de fazer isso, para regular seus organismos. Conosco deve ter sido instintivo assim também. Uma bomba de sódio-potássio desregulada clamou para que um antepassado lambesse uma salina. Começou um caso de amor.
Na Antiguidade, no mundo todo, há casos de exploração de antigas salinas. Da China antiga, passando pelo mundo mediterrâneo, África até as Américas. Algumas das primeiras estradas do mundo foram feitas para se transportar sal, à época uma mercadoria rara (não há salinas em todo lugar) e, portanto, cara. A palavra salário deve sua etimologia aos pagamentos feitos em porções de sal aos soldados romanos. Nas Américas, sal também era moeda. Ele foi um dos responsáveis pelo renascimento do comércio de longa distância na Europa Medieval, sendo uma das commodities mais valiosas transportadas pela poderosa Liga Hanseática.
Servia para conservar alimentos, temperá-los, prepará-los e, em algumas culturas, envolvia curas. Até hoje, fazemos as mesmas coisas com o sal. Charque, bacalhau, arenque, presunto cru, conservas mil. O sal continua sendo uma geladeira. Desde cedo, era fundamental para curtir couro. Como tempero, sempre foi utilizado diretamente ou compondo molhos e bases. Em Roma, “a cebola e o alho”, o tempero de todo dia, era o garo (ou liquamen), uma mistura de caldo de peixe fermentado com muito sal. Portugal era o lar dos melhores garos do Velho Mundo, transportado em ânforas por todo o Mediterrâneo e continente adentro. Por fim, uma das composições mais simples do mundo, o soro caseiro, salva mais vidas do que imaginamos. Estima-se em mais de 50 milhões, segundo a Unicef. Diarreia matou reis e príncipes durante toda a história. Para cada nobre falecido disso, milhões de plebeus. Uma mistura desenvolvida no mundo contemporâneo (água, açúcar e sal) foi revolucionária.
Erre a dose de sal, contudo, e enfrente as consequências: comida intragável ou insossa. Excesso e falta são pecados mortais no mundo do tempero. O consumo abundante de sal de cozinha pode causar hipertensão, problemas sérios de rins e danos à saúde. Remédio e veneno são a mesma coisa em doses diferentes, não é mesmo? Parte da sabedoria da cozinha e da vida está na administração da quantidade de uma pitada de sal para alegrar e dar sabor a tudo. É o sentido do ditado latino cum grano salis, com uma pitada de sal, significando dando um pouco mais de vida ao que, sem a pitada, seria destituído de encanto.
Se o sal foi tão valioso, também foi maldição. Os romanos, quando ganharam definitivamente a guerra contra a arquirrival Cartago, resolveram apagá-la do mapa. Destruíram cada construção da cidade. Equipes de engenheiros e soldados revezaram-se sem descanso para cumprir monstruosa tarefa. Ao fim, salgaram o chão do lugar para que, nunca mais, nada prosperasse ali. A prática de apagar sua memória foi usada por milênios. Em Ouro Preto, a casa de Tiradentes foi demolida e o terreno “temperado” com o mesmo objetivo.
Sal, o prosaico grãozinho branco, foi política. Gandhi praticamente ganhou a independência da Índia por causa do produto. Proibidos de extrair a matéria em seu próprio país, os indianos eram obrigados a consumir produtos ingleses (pagando tributos sobre eles). Gandhi iniciou uma longa marcha de 400 quilômetros, à qual se juntaram milhares de seguidores em cada cidade de parada. A ideia era simples, recolher um pouco de sal no fim da marcha. Gesto simples, banal, mas contra a lei britânica. Milhares foram presos, incluindo o idealizador do protesto pacífico, outros tantos foram brutalmente espancados por soldados ingleses armados e com cavalos. A violência e a lógica colonial criaram uma avalanche na opinião pública. Um ano depois da marcha do sal, os proibitivos haviam caído e a marcha pela independência do país havia começado.
Jesus parece ter razão quando, em Marcos, nos diz que para sermos bem-aventurados precisamos ser o sal da terra. O sal ruim deve ser jogado fora. O bom fará o mundo. Padre Vieira pregou um lindo texto sobre o tema sermão de Santo Antônio aos peixes: “O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar”. Trata-se de ótima reflexão do século 17 para os dramas do 21.
Salgue a vida. Olhe para os lados e perceba que tudo o que o cerca tem história. Tenha um pouco de tempero e muita esperança, cum grano salis. A vida e a comida precisam de tempero.
ARTIGO470