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Orçamento secreto fere a Constituição, aponta relatório do TCU

Esquema contraria também regras de transparência; prestação de contas do governo Bolsonaro em 2020 será julgada na próxima quarta-feira

Breno Pires e André Shalders, O Estado de S.Paulo, 25 de junho de 2021

BRASÍLIA – Depois de examinar as explicações do governo sobre o chamado orçamento secreto, a área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o mecanismo usado para distribuir bilhões de reais das emendas de relator-geral do orçamento é incompatível com a Constituição. Um relatório dos auditores obtido pelo Estadão apontou falta de transparência e critérios na lógica de atender ofícios de deputados e senadores no repasse dos recursos. “A realidade identificada não reflete os princípios constitucionais, as regras de transparência e a noção de accountability”, destacou o documento preparado pela equipe do tribunal. O esquema ficou conhecido nas redes sociais como “tratoraço”, pois parte dos recursos foi usado para comprar tratores em redutos eleitorais de parlamentares.

A conclusão dos técnicos, a primeira dentre várias que estão sendo preparadas, consta de um dos capítulos da análise feita sobre a prestação de contas da Presidência da República no exercício de 2020, que serão julgadas na próxima quarta-feira, dia 30.

Nos últimos dias, os auditores se debruçaram sobre um lote de documentos enviados pelo Palácio do Planalto e pelos ministérios para tentar justificar o esquema montado pelo presidente Jair Bolsonaro para garantir apoio político. A conclusão deles derruba o discurso de Bolsonaro e dos ministros da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de que o direcionamento dos recursos não foi sigiloso. “Nesse cenário de ausência de divulgação dos critérios objetivos e de instrumento centralizado de monitoramento das demandas voltadas para a distribuição das emendas de relator-geral (RP-9), fica comprometida a transparência da alocação de montante expressivo do orçamento da União”, afirmaram.

Os técnicos lotados na Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag) do TCU apontaram uma dificuldade do Planalto de demonstrar critérios técnicos no repasse do dinheiro a ausência do princípio da equidade, que deve “permear a distribuição de emendas parlamentares”. Eles ainda ressaltaram a importância do respeito às normas orçamentárias para a democracia. “Dada sua importância para a consolidação do Estado Democrático inaugurado em 1988, o orçamento público conta com regras norteadoras de densa relevância definidas no Capítulo das Finanças Públicas na própria Carta Política”, destacaram.

Como o jornal revelou em série de reportagens, parlamentares aliados indicaram transferências em valores muito superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – que são as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, são oficializadas por meio de ofícios ocultos ao público.

A reportagem apurou que há uma tendência de o tribunal não reprovar as contas de 2020 no julgamento, mas a Corte deve recomendar formalmente à Presidência que dê ampla publicidade às informações sobre quais são os reais solicitantes dos repasses listados como de autoria do relator-geral do orçamento. Para os técnicos do TCU, esses documentos devem ser disponibilizados na internet. “A distribuição de emendas parlamentares por dezenas de ofícios e planilhas não se demonstra compatível com o arcabouço jurídico-constitucional”, ressaltaram.

Num dos papéis enviados pelo governo ao TCU, a Secretaria de Orçamento Federal (SOF), do Ministério da Economia, afirmou que não participou do processo decisório sobre a atual sistemática de distribuição dos recursos provenientes de emendas RP-9. “Até mesmo no que tange aos critérios de distribuição, sob a forma de transferência voluntária, das programações provenientes das emendas de relator-geral, a SOF alegou que, por não ‘constar no rol de suas competências’, o órgão ‘não teve participação em suas eventuais definições e sobre eles não têm informações’”, destacou a equipe técnica do TCU. “As informações extraídas das respostas às diligências expõem a inexistência de procedimentos sistematizados para o monitoramento e avaliação dos critérios de distribuição de emendas RP-9, tal como ocorre, por exemplo, com as emendas individuais por meio do Siop (Sistema de Planejamento e Orçamento do Governo Federal).”

Essa foi a primeira análise da equipe de auditores após a Casa Civil e a Economia terem apresentado informações e documentos solicitados pelo TCU sobre a execução das emendas de relator-geral. Outros processos aprofundarão o debate no tribunal. A própria análise de mérito da compatibilidade da sistemática de alteração orçamentária com as premissas da Constituição será feita em um outro processo, de relatoria do ministro Aroldo Cedraz, que é o relator das contas do governo no exercício de 2021. “Convém registrar que as questões atinentes à suposta aplicação irregular dos recursos alocados sob a forma de RP-9 são objeto de apuração em processos específicos”, salientou a equipe técnica do tribunal.

Caráter democrático. Os auditores ressaltaram que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 traz “duas passagens importantes que devem ser consideradas para subsidiar a análise do caráter democrático da distribuição de parcela expressiva de recursos da União”. A primeira delas é a que exige transparência e que sejam levados em consideração indicadores socioeconômicos pelo governo na hora de realizar transferências voluntárias para municípios e estados.

A segunda regra em destaque dispõe que a execução da LDO 2020 e dos créditos adicionais obedecerá aos princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência na administração pública federal, e não poderá ser utilizada para influenciar na apreciação de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional, conforme art. 142 da LDO, afirmaram os auditores.

Além da fragilidade do discurso do governo, o trabalho dos auditores ressalta o papel fundamental que a transparência tem na democracia. “Cumpre observar que a Carta Política não apenas consagrou a publicidade no art. 37, mas a definiu como valor constitucional a ser observado em todos os atos e atividades estatais, que têm na transparência a condição de legitimidade de seus próprios atos e resoluções. Em face de sua alta significação, a publicidade consta da declaração de direitos e garantias fundamentais reconhecidos e assegurados aos cidadãos em geral”, afirmou trecho do documento.

O governo federal empenhou R$ 21,9 bilhões em 2020 e prevê, na Lei Orçamentária de 2021, mais R$ 18,5 bilhões em gastos com as emendas de relator-geral. Só em dezembro do ano passado, o Ministério do Desenvolvimento Regional empenhou R$ 3 bilhões para atender indicações de parlamentares em meio às negociações conduzidas pela Secretaria de Governo da Presidência da República para ajudar a eleger os governistas Arthur Lira (Progressistas-AL) para a Presidência da Câmara e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para a do Senado. Parte dos valores foi reservada para a compra de tratores entre outras máquinas agrícolas e de construção com elevadas variações de preço, considerando-se os custos pagos por diferentes órgãos do governo federal e a tabela de referência da pasta de Desenvolvimento Regional.

Além do TCU, os questionamentos à aplicação dos valores estão sendo analisados no Supremo Tribunal Federal, em ações apresentadas por partidos da oposição que buscam a declaração de inconstitucionalidade desse tipo de emenda (RP 9). A Procuradoria-Geral da República também abriu uma investigação preliminar a pedido de parlamentares da oposição. Há duas semanas, o órgão notificou seis ministérios do governo para que apresentem informações.

Desigual. A análise da Secretaria de Macroavaliação Governamental do TCU também põe em xeque a distribuição desigual de valores pelo governo para favorecer aliados. A unidade afirma que o governo não apresentou evidências de que tenha havido equidade na distribuição de bens e a destinação de valores. “Equidade, que deve permear a distribuição de emendas parlamentares”, frisou a Semag. Essa observação contradiz uma declaração do ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, dada ao jornal O Globo, na qual minimizou a discrepância nos valores destinados aos líderes do Congresso.

Não foi esclarecido, segundo os auditores, o critério objetivo e os referenciais de equidade que nortearam a distribuição das emendas RP-9 entre as capitais que receberam valores mais significativos. A equipe do TCU fez uma tabela comparativa dos valores per capita destinados aos municípios aquinhoados com mais de R$ 50 milhões com emenda de relator-geral em 2020. Em uma primeira leitura, que será aprofundada pela área técnica do tribunal em outro processo, chamou a atenção dos auditores que os municípios de Tauá (CE), Carneiro (AM), Parintins (AM) e Santana (AP) receberam “montantes muito superiores aos verificados nas alocações per capita dos respectivos estados, regiões e da média per capita nacional”.

Governada pela prefeita Patrícia Aguiar, mãe do relator-geral do orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), Tauá aparece como beneficiada com R$ 146 milhões em 2020,  o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante, enquanto a capital cearense, Fortaleza, teve valor per capita de R$ 77,85, com valor total de R$ 209 milhões. No Amazonas, a capital Manaus recebeu R$ 87 milhões, o que dá R$ 39,49 per capita, enquanto Parintins recebeu R$ 125 milhões, ou R$ 1.086,56 por pessoa. “Os fatores serão analisados nos processos de fiscalização em curso nesta Corte de Contas”, frisaram os auditores.

Desde o início da publicação da série do orçamento secreto, o governo faz uma ofensiva para negar o caso. “Não tem nada de secreto, foi votado e é absolutamente transparente”, disse Marinho ao Globo em 17 de maio. Na mesma ocasião, o ministro do Desenvolvimento avaliou como normal a concentração de emendas entre aliados do governo. “Há grupos que se digladiam para chegarem à presidência de cada uma das Casas legislativas. É evidente que formam maioria no Parlamento e essas maiorias são exercidas, inclusive, na questão do Orçamento em qualquer democracia do mundo. É muita ingenuidade imaginarmos que na discricionariedade você vai tratar os desiguais de forma igual”, afirmou o ministro.

O negacionismo do governo sobre os segredos do orçamento também envolveu o ministro Wagner Rosário, da Controladoria-Geral da União (CGU),  órgão responsável pelo controle da transparência das contas do governo e pelo accountability no País. “Secreto é uma coisa escondida. Se os valores estão lá, não é secreto”, disse à Rádio Jovem Pan em 24 de maio. “Hoje mesmo eu fiz questão de entrar no site da Codevasf, fui lá nas ações apontadas, e tem várias especificações das compras e, inclusive, quem indicou, o parlamentar que indicou aquilo ali.”

ARTIGO750

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