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Os EUA e sua atitude perigosa com a China

A relação já era difícil, mas agora não há diálogo e Pequim está ampliando seu arsenal nuclear

Fareed Zakaria , O Estado de S. Paulo, 4 Mar 2023

Nós escutamos com frequência que os EUA estão profundamente divididos, a polarização torna impossível fazer qualquer progresso em políticas e nosso país está tão conflituoso internamente que não consegue projetar unidade e força para o mundo.

Mas, sobre um dos temas de política externa mais importantes para os formuladores de políticas, o problema é mais próximo ao oposto dessas cisões. Washington aceitou um amplo consenso a respeito da China que se transformou em um exemplo clássico de pensamento de grupo.

Acompanhar a sessão da terça-feira da nova comissão especial da Câmara dos Deputados sobre a China foi como ser transportado de volta para os anos 50. Membros de ambos os partidos tentaram superar um ao outro em suas denúncias sobre os chineses, descrevendo – como fez o presidente da comissão, Mike Gallagher, republicano de Wisconsin – o Partido Comunista como uma ameaça “existencial” para os EUA.

Gallagher culpou o PC diretamente por todo e qualquer problema dentro do território americano, do uso de drogas à covid-19, até o desemprego – uma acusação estranha, já que o índice de desemprego está no nível mais baixo em mais de 50 anos.

Parte dessa retórica extrema nós podemos desconsiderar, pois diz respeito à grandiloquência comum aos gestos políticos no Congresso, mas isso cria uma dinâmica que dificulta a formulação de políticas.

BALÕES. Veja o que ocorreu algumas semanas atrás. O presidente dos EUA, em uma atitude que só pode ser descrita como pânico, ordenou que forças militares americanas derrubassem três balões que eram provavelmente equipamentos privados de medição climática – similares a outras centenas de objetos desse tipo que atravessam os céus de todo o planeta – que não representavam nenhuma ameaça para ninguém.

Os modelos de balões usados por aficionados e clubes meteorológicos são encontrados à venda a partir de US$ 12. Cada míssil usado para derrubar os objetos violadores custa mais de US$ 400 mil. As operações de derrubada foram ordenadas, é claro, para que ninguém possa afirmar que Joe Biden pegou leve com os chineses.

A China é uma rival estratégica séria, a grande potência competitiva mais significativa que os EUA encararam em muitas décadas. Isso é ainda mais motivo para Washington forjar uma política externa racional e ponderada em relação a Pequim – em vez de fundamentada em paranoia, histeria e, acima de tudo, no medo de ser qualificada como branda.

Sempre que as políticas são formuladas conforme essa segunda circunstância, como nos casos do Vietnã ou do Iraque, o resultado é ruim. Em 2003, quando o então líder da minoria no Senado, Tom Daschle, democrata da Dakota do Sul, tentou argumentar a favor de mais diplomacia antes da guerra com o Iraque, o então presidente da Câmara, Dennis Hastert, republicano de Illinois, sugeriu que Daschle estava dando margem para o inimigo.

A comissão especial sobre China falava em termos similares com qualquer um que sugerisse melhorar as relações com Pequim.

Seis anos atrás, antes de Donald Trump chegar ao poder, a relação entre EUA e China poderia ser descrita como difícil, talvez até tensa, mas exequível, com diálogo regular entre as duas nações nos níveis mais altos. Quando Washington confrontava os chineses sobre certos assuntos, como manipulação monetária e espionagem econômica, Pequim fazia algum esforço para enfrentar as acusações.

ALERTAS. Hoje, a relação entre EUA e China está uma bagunça. Pequim continua a fazer coisas que acendem alertas em Washington, mas não há nenhum diálogo entre os dois lados. O governo chinês está apoiando a Rússia tanto na economia quanto na diplomacia em sua guerra na Ucrânia. Se esse apoio se expandir para assistência militar, o Kremlin obteria um fornecimento quase ilimitado de armamentos, o que transformaria a guerra.

A visita, em agosto, da então presidente da Câmara, Nancy Pelosi, democrata da Califórnia, a Taiwan deu ao Exército de Libertação Popular uma oportunidade dourada para treinar um bloqueio de vários dias à ilha – que Pequim considera uma província rebelde –, sua intervenção militar mais provável no advento de uma crise.

Se o atual presidente da Casa, Kevin McCarthy, republicano da Califórnia, também visitar Taiwan, o Exército chinês, provavelmente, veria isso como pretexto para treinar uma estratégia mais longa e completa de isolamento total da ilha, mostrando aos taiwaneses que é capaz de isolá-los segundo a vontade de Pequim.

O mais perturbador disso tudo é que a China está empreendendo um programa sério de modernização nuclear. Por décadas, a China adotou a posição de que seu pequeno arsenal nuclear – em torno de apenas aproximadamente 200 ogivas – era dissuasão suficiente. Os chineses também reafirmavam rotineiramente sua doutrina de “não acionar primeiro”.

Hoje, estima-se que o estoque de ogivas nucleares da China esteja em mais de 400 unidades, e o país está a caminho de mais que triplicar esse número. Enquanto isso, a Rússia abandonou praticamente todos os fóruns e tratados de controle de armas com os EUA.

Conforme notei anteriormente, estamos diante de uma nova era nuclear na qual dois dos três maiores arsenais do planeta pertencem a países proximamente aliados, que provavelmente apontarão seus mísseis para os EUA.

Quanto disso era inevitável? É difícil dizer. A China cresceu enormemente como potência desde 2000. Naquela época, sua economia era responsável por quase 4% do PIB global. Hoje, esse índice está em 18%. Os gastos militares de Pequim cresceram ainda mais rapidamente. Xi Jinping é um líder muito mais agressivo que seus antecessores.

MUDANÇAS. Mas também é verdade que a política externa dos EUA mudou. Hoje, temos uma forte visão bipartidária sobre o perigo supostamente existencial apresentado pelo Partido Comunista Chinês, que considera mudança de regime a única solução para o problema.

Mas esse confortável consenso criou um mundo mais seguro para os americanos (e os demais)? Ou estamos percorrendo um caminho que nos levará a décadas de corridas armamentistas, crises e, talvez, até mesmo à guerra? •

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

ARTIGO910

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