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Palácios da injustiça

Nenhum Poder evidencia mais o abuso do Direito para normatizar a injustiça do que a própria Justiça

 

Reformas de estruturas legais normativas, tais como a trabalhista, a previdenciária ou a tributária, envolvem por sua natureza a correção de desajustes e a retificação de injustiças. Ajustes cíclicos são sempre necessários devido a transformações demográficas, sociais ou econômicas. Mas há as injustiças derivadas exclusivamente da ganância corporativa que sedimenta privilégios na forma de “direitos”. De todas as reformas, a administrativa é a que tem maior potencial de corrigir injustiças que corroem a vida pública ao longo de gerações. E, por uma contradição, nenhum Poder evidencia mais o abuso do Direito para normatizar a injustiça do que a própria Justiça.

Como mostrou reportagem do Estado, em 24 dos 27 Estados os juízes recebem mais de R$ 1 mil mensais de vale-refeição. Em apenas três Estados o valor é equivalente ao do Judiciário federal, R$ 910, enquanto o vale-refeição do Executivo federal é de R$ 458.

Surpreendentemente – mas, no fundo, consequentemente – os valores são mais altos em alguns dos Estados mais pobres, desiguais e com pior IDH. Em Pernambuco, o valor chegou a R$ 4.787, quase cinco vezes o salário mínimo (R$ 998) e mais que o dobro da renda mensal dos brasileiros (R$ 2.317). Enquanto os professores recebem em média R$ 2.557 de salário, os magistrados do Amapá chegaram a receber para suas refeições R$ 3.546; os do Acre, R$ 4.255; e os de Roraima, R$ 2.000. Vale lembrar que os tribunais, sobretudo os de segunda instância, gozam de verbas suculentas para oferecer todo tipo de refeições, lanches e coquetéis aos seus apaniguados.

“O Poder Judiciário se distanciou demais da realidade brasileira. Há um fosso muito grande entre o povo e a Justiça”, disse o deputado José Nelto (Pode-GO). “Passou da hora de a sociedade reagir e de o Judiciário começar a dar a sua cota de sacrifício.” Na verdade, nem sequer se trata de sacrificar o que quer que seja, mas apenas de restituir – ou ao menos parar de drenar – recursos do contribuinte que, por qualquer critério imaginável de administração ou moralidade pública, não deveriam estar abastecendo o patrimônio dos juízes.

Enquanto os 50% menos favorecidos da população têm renda média de R$ 820, o teto para remuneração dos juízes, R$ 35.462, já os coloca no topo do 1% mais rico do País, cuja renda média é de R$ 27.744. Mas os juízes estaduais recebem em média R$ 43.437, devido aos “penduricalhos”, auxílios e vales (para moradia, livros, paletó, etc.), que, ademais, entram livres, sem tributação.

Como costuma dizer o ministro Gilmar Mendes, o teto constitucional tornou-se o “piso”. Um piso peculiarmente sólido, por sinal, já que o orçamento do Judiciário é protegido de qualquer crise – todo tipo de corte ou bloqueio por parte dos governadores é vedado, para não caracterizar interferência em outro Poder.

O corporativismo obsceno, que levou, por exemplo, o procurador-geral da República a justificar os 60 dias de férias de magistrados e procuradores devido a uma carga de trabalho “desumana”, é desmascarado a cada novo levantamento. Um estudo feito pelo Partido Novo na Câmara mostra que os servidores do Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União têm uma carga de trabalho 20% menor do que os empregados com carteira assinada. Isso porque nesses órgãos a jornada de trabalho é de 35 horas semanais e há recesso forense de 20 de dezembro a 6 de janeiro, além de cinco feriados exclusivos da Justiça. A discrepância é gritante até em relação ao resto do funcionalismo: a carga dos servidores do Legislativo é 16,5% menor que a do trabalhador privado e a do Executivo, 1,5%.

“Os juízes perderam a compostura e esqueceram o que significa uma nação”, disse o deputado Rubens Bueno (CDD-PR), autor de uma proposta que regulamenta benefícios como esses. Em que pesem os méritos e a boa conduta de tantos juízes tomados individualmente, o veredicto do deputado em reação à corporação é irrefutável. “Deveriam fazer a lei valer para todos, mas burlam a norma para obter benefícios próprios.”

Fonte: O Estado de S.Paulo | Notas & Informações | 05 de janeiro de 2020 | 03h00

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