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Pandemia da covid-19 completa seis meses no Brasil e deixa lições

Números ainda são muito altos e nenhuma vacina ou tratamento específico contra o novo coronavírus foi descoberto

Roberta Jansen, RIO – 25 de agosto de 2020

O carnaval mal tinha terminado oficialmente quando o Brasil registrou o primeiro caso de covid-19 – pouco menos de 60 dias depois da detecção do vírus no interior da China. Nesta terça-feira, a epidemia completa seis meses em território nacional.

De acordo com o Ministério da Saúde, em 13 de agosto, a doença estava presente em 98,4% dos municípios. São 3,6 milhões de casos confirmados e mais de 115 mil mortes, o que nos coloca na posição de segundo país mais afetado do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

“Uma nova epidemia virá em algum momento”, sustenta Roberto Medronho, especialista em saúde pública e professor de epidemiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Não é uma questão de ‘se’, mas de ‘quando’ um novo vírus surgirá ou um vírus já conhecido ressurgirá.”

Os números ainda são muito altos, e nenhuma vacina ou tratamento específico contra o novo coronavírus foi descoberto, a despeito dos esforços científicos sem precedentes. Mesmo  assim, especialistas brasileiros dizem que aprendemos lições importantes nos últimos meses. Sobre a doença especificamente e também sobre a humanidade de uma maneira mais geral.

Listamos abaixo seis delas, que devem nos acompanhar mesmo depois da pandemia.

A COMPREENSÃO DA DOENÇA

Inicialmente considerada uma doença pulmonar, a covid-19 se revelou uma doença sistêmica, que ataca diversos órgãos e funções do corpo. “Houve uma curva de aprendizado muito intensa”, atesta a pneumologista Margareth Dalcolmo, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

A necessidade de combater a inflamação generalizada, a atenção especial aos eventos circulatórios, a garantia da boa oxigenação do paciente são algumas das práticas que já se tornaram norma no atendimento à covid. Nenhum remédio específico se revelou eficaz contra o vírus, mas vários medicamentos estão sendo usados para tratar os sintomas, como corticoides, anticoagulantes e terapia com plasma convalescente. O preparo da equipe médica também é crucial.

“Os melhores resultados não estão associados a novas medicações ou terapias, mas ao preparo da equipe e ao treinamento”, afirma o infectologista Fernando Bozza, do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz. “As boas práticas com os pacientes graves salvam vidas, não as tentativas esdrúxulas de uso de terapias sem evidências científicas.”

O IMPACTO ECONÔMICO E SOCIAL

“Esse modo de produção e de vida que o mundo adotou precisa ser revisado, isso ficou muito evidente”, diz o epidemiologista Roberto Medronho, coordenador do Grupo de Trabalho Multidisciplinar para Enfrentamento da Covid-19 da UFRJ. “Espero que nesses meses de isolamento e confinamento as pessoas tenham aproveitado para repensar um pouco a forma de lidar com a natureza e como o outro.”

A epidemia também teve um efeito devastador sobre o sistema de saúde de vários países, como Itália e Espanha, e também de muitos estados do Brasil, como o Amazonas. Paralisou parte da produção industrial, do comércio e deixou milhares de desempregados.

“No caso específico do Brasil,  a epidemia acentuou as desigualdades econômicas, raciais e regionais”, constata Fernando Bozza. “A letalidade entre os jovens internados no Nordeste, por exemplo, é o dobro da registrada no Sudeste. Esse resultado não é exclusivamente por causa da epidemia, mas porque já era horrível antes e agora piorou.”

A IMPORTÂNCIA DA CIÊNCIA

Sem ciência, não teríamos avanços tão rápidos na compreensão da doença, na criação de kits de diagnóstico e, sobretudo, no desenvolvimento de vacinas em tempo recorde. São mais de 160 substâncias sendo testadas em todo o mundo, segundo a OMS. As expectativas mais otimistas são de que poderíamos ter um imunizante eficaz já no início do ano que vem.

“A pandemia deixou também muito claro que não podemos ficar dependentes de outros países nesta área, precisamos de autonomia”, diz Roberto Medronho. “Houve um momento em que não havia respiradores, máscaras, equipamentos de proteção individual. Não podemos ficar dependentes da China, dos Estados Unidos, ou de quem quer que seja. Não podemos ser totalmente dependentes no caso das vacinas. Acho que agora pelo menos parte da sociedade percebeu a importância da ciência para o desenvolvimento de uma nação.”

O oncologista Cláudio Ferrari, diretor do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, sustenta que as grandes respostas da ciência vêm sempre das ciências básicas. “A ciência é uma atividade colaborativa, e as respostas são construídas juntando-se conhecimentos; o livre trânsito de informações é fundamental para que isso aconteça.”

Para Medronho, a pandemia indica também a necessidade de investimentos na descoberta de novos fármacos capazes de destruir os vírus emergentes.

O ESTRAGO DAS FAKE NEWS

“O desserviço que as fake news fizeram do ponto de vista da informação para a população foi enorme. As redes sociais foram inundadas com bobajadas sem fim, terapias falsas, uma série de coisas que serve apenas para confundir a população: foi um desserviço político e de saúde pública”, critica Fernando Bozza. “A imprensa está fazendo o seu papel, mas a sociedade brasileira como um todo não conseguiu se organizar para dar uma resposta adequada diante da gravidade do que estamos vivendo.”

Especialistas que constataram que a cloroquina não funcionava contra a covid chegaram a ser ameaçados de morte. Alguns médicos, por sua vez, defenderam o uso de remédios  sem eficácia comprovada com base em evidências.

Para o infectologista, a falta de uma resposta nacional coordenada e as mensagens contraditórias enviadas pelo governo federal confundiram ainda mais a população.

A HERANÇA PARA A HUMANIDADE

“A gente aprendeu muita coisa”, diz Margareth Dalcolmo. “Toda uma geração que nunca tinha vivenciado algo semelhante (a última grande pandemia foi a da gripe espanhola de 1918) pode entender de fato o que é uma pandemia de uma doença transmissível. É assustador. É um evento que certamente vai modificar a qualidade de vida no planeta, para o bem ou para o mal.”

Claudio Ferrari destaca a importância da globalização na pandemia. “Num mundo cada vez mais globalizado, as doenças se tornam universais; as comunidades operam como grandes organismos: adoecemos juntos e nos recuperamos juntos”, diz. “Outra lição importante é que é mais fácil matar o mosquito do que fazer as pessoas usarem máscaras e lavarem as mãos; as mudanças de hábitos seguem como o grande desafio para a saúde no século XXI.”

A CERTEZA DA PRÓXIMA EPIDEMIA

“Estava previsto por várias pessoas que haveria uma pandemia de doença respiratória; até o Bill Gates, num Ted Talks, falou sobre isso”, lembra Fernando Bozza. “Mas embora os governos soubessem disso, poucos países se prepararam, a maior parte foi surpreendido, mesmo aqueles que tinham algum plano. E os países hoje que têm o maior número de casos e mortes, Estados Unidos e Brasil, são os que negaram a epidemia, demoraram para dar uma resposta e não tiveram uma resposta coordenada.”

Roberto Medronho afirma que uma nova epidemia virá em algum momento. “Não é uma questão de ‘se’, mas de ‘quando’ um novo vírus surgirá ou um vírus já conhecido ressurgirá.”

Para os especialistas, é preciso que haja uma política nacional estruturada para enfrentar o problema. “A epidemia gerou a maior queda do PIB global desde que o PIB global é aferido”, constata Fernando Bozza. “Ou seja, o custo da pandemia é muito maior do que qualquer medida de prevenção ou mitigação que tivesse sido tomada.”

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