PAPER 56: Projeto de País (EU SOU BRASIL!!!)
Tema: “A denúncia é um alicerce da democracia americana”
O texto que se segue é uma entrevista. O tema versa sobre o comportamento dos servidores públicos, eleitos ou concursados.
Ajuda a governar. É oportuno conhecermos com mais profundidade a questão que nos EUA, a mais desenvolvida democracia no mundo, assume alta importância, ancorando-se ainda lá na fundação da nação americana – os fundadores da pátria. Temos o que aprender.
“Autor entrevistou 200 denunciantes para escrever um livro sobre o papel da delação na vida política dos Estados Unidos
O sociólogo e jornalista americano Tom Mueller passou os últimos três anos entrevistando cerca de 200 agentes e ex-agentes públicos americanos que denunciaram, por vias legais na maioria das vezes, comportamentos inadequados, conduta imprópria de superiores e corrupção institucional em importantes órgãos.
Em seu livro Crisis of Conscience: Whistleblowing in an Age of Fraud (Crises de consciência, o ato de denunciar em uma era de fraudes, em tradução livre), Mueller diz que os “whistleblowers”, denunciantes de más práticas em órgãos públicos, são quase uma instituição da democracia americana desde os pais fundadores, no século 18. “Apesar disso, eles são estigmatizados”, diz Mueller nesta entrevista ao Estado. “As pessoas costumam torcer pelos denunciantes em filmes de Hollywood, mas não enxergam a destruição que acontece de fato na vida deles.”
• O senhor entrevistou mais de 200 denunciantes para escrever seu livro. Por que os denunciantes delatam?
Muitos denunciantes, incluindo os ligados à agências de Segurança Nacional, que eu acreditava serem radicalmente diferentes na forma e na substância, eram membros da mesma espécie: a de pessoas com consciência, que enxergam que alguma coisa está errada, não se conformam com a corrupção institucional e se sacrificam para denunciar aquilo, por meios legais e institucionais, não para promoção individual. Se sacrificam, tentando permanecer anônimas, e sofrem as graves consequências por causa de sua crise de consciência.
• O senhor disse que essa é uma “categoria rara de seres humanos”. Por quê?
A maioria de nós, quando nos deparamos com um caso hipotético, achamos que faríamos a coisa certa, assim como os denunciantes. Mas, quando estamos dentro de uma equipe forte e unida, por ordem de um líder carismático, a maioria não tem a clareza de pensamento ou a força de caráter para resistir às ações do grupo e fazer a coisa certa. A maioria não entende as terríveis perdas que os denunciantes sofrem. As pessoas costumam torcer pelos denunciantes em filmes de Hollywood, mas não na vida real. Isso porque não enxergam a destruição que acontece de fato na vida deles e as terríveis consequências do ato de denunciar.
Quais são as consequências?
Todos os 200 denunciantes que entrevistei sofreram terríveis consequências por seus atos de consciência. Perderam seus empregos, seu patrimônio, sua vida pessoal ficou esfacelada, foram perseguidos, presos e denunciados. Desde o início da denúncia nos Estados Unidos, os denunciantes do governo que colocam seus nome e rosto em suas revelações não se saíram bem, principalmente os da comunidade de inteligência. Eles são tipicamente manchados pela mídia, processados e demitidos.
O senhor tem exemplos?
Inúmeros. Patrick Eddington, um ex-funcionário da CIA que revelou que sua agência e os militares estavam encobrindo a exposição dos soldados americanos a toxinas durante a Guerra do Iraque de 1991, foi processado e teve sua casa invadida por agentes do FBI. Por uma década não conseguiu emprego. Eddington voltou ao serviço público, mas foi exceção. Em 2007, quatro altos funcionários da Agência de Segurança Nacional denunciaram, por meio de canais oficiais, fraudes e má conduta na agência que facilitaram os ataques de 11 de setembro. Foram identificados, tiveram suas casas invadidas por agentes do FBI e suas vidas pessoais devassadas, foram ameaçados de processos e tiveram as carreiras no serviço público encerradas. O Departamento de Justiça de
Barack Obama empregou agressivamente a Lei de Espionagem para processar funcionários que compartilharam informações classificadas com jornalistas, em alguns casos nomeando os próprios jornalistas como co-conspiradores.
Por que muitos denunciantes ficam estigmatizados?
Porque a lealdade é uma das emoções humanas mais poderosas, e a aplicamos acriticamente, mesmo em contextos em que não deveria existir. Se você descobrir que sua irmã, uma enfermeira de um hospital local, prática eutanásia em pacientes idosos sob seus cuidados, você permanece leal a ela e não informa a polícia? Ou se você é membro da máfia e, depois de muitos crimes, se cansa do assassinato e denuncia seus companheiros às autoridades, deve ser considerado traidor? As respostas aqui parecem claras no plano abstrato, mas, em nosso estômago, não importa quantas vidas um denunciante salve, ainda temos aquela pequena voz de lealdade em nossas mentes sussurrando: “Sim, mas eles cruzaram a linha, e merecem o que recebem em troca”.
• Como o senhor recebeu a notícia de uma delação sobre a ligação de Donald Trump para o presidente da Ucrânia a uma semana do lançamento do seu livro?
Foi surpreendente pela dimensão que a denúncia tomou. Muitos observadores descreveram este caso como sem precedentes. Eu discordo fortemente. No meu livro, eu detalho como numerosos insiders da segurança nacional delataram graves irregularidades e pagaram um preço terrível em seu trabalho e em sua vida privada – mesmo quando fizeram suas delações estritamente por meio de canais oficiais.
Como vê a reação do governo ao atual vazamento?
Quando falava sobre o vazamento de informações sobre a Guerra do Vietnã feito por Daniel Ellsberg [denunciante que revelou os Papéis do Pentágono], Richard Nixon dizia que tais “atos de consciência” eram indefensáveis, um crime de traição. O grupo mais próximo de Nixon levou a sério a hipótese de “causar danos corporais” a Ellsberg. Trump faz eco disso, inclusive dizendo que esse “espião” deveria ser tratado como os espiões eram nos bons velhos tempos – o que implica que ele deve ser apagado. Isso é uma afronta aos valores americanos de freios e contrapesos, que vêm desde os pais fundadores da nação, e da qual a denúncia faz parte.
• Concorda com Daniel Ellsberg que dizia que “o vazamento não é uma traição, mas um ato final de patriotismo”?
Isso depende do que foi vazado. Se alguém vazar planos secretos de armas nucleares para os russos, isso é traição, não patriotismo. Mas se alguém vazar, como Ellsberg, provas de mentiras oficiais, de más práticas e irregularidades cometidas por uma série de presidentes e outras altas autoridades que estavam perpetuando uma guerra ilegítima e impossível de se vencer, sem dúvida, eles são patriotas.
• O senhor defende que o ato de denunciar é um dos alicerces da democracia dos EUA. Por quê?
Os pais fundadores desta nação são os exemplos clássicos de denunciantes. Eles agiram para denunciar a Coroa britânica e deixaram gravados na Constituição a proteção e até o incentivo da denúncia. Os fundadores trataram os denunciantes com grande respeito e aprovaram leis que os protegiam. Os próprios fundadores se comportaram como denunciantes. Pense nisso: eles, conscientemente e sob enorme risco, negaram a autoridade de seu divino monarca, o rei George III, para seguir uma autoridade superior: verdade e justiça. Eles quebraram sua lealdade à Mãe Grã-Bretanha para seguir lealdades mais altas à sua nova nação e à humanidade. Eles acreditavam na importância soberana do indivíduo e da consciência individual. Eles afirmaram não apenas o direito, mas o dever de cada indivíduo de revelar irregularidades que colocam o público em perigo. Para mim, isso é um evidente comportamento de denunciante.”
A democracia fundada no Estado de Direito e na cidadania não é uma estação de chegada, mas uma maneira de viajar, visando desenvolvimento econômico, político e social para tornar o Brasil a melhor nação do mundo para se viver bem.
Fonte: O Estado de S. Paulo 13 Out 2019 – Rodrigo Turrer