Pico populacional pode ser menor que o esperado
Novas projeções indicam que houve queda nas taxas de fertilidade na África Subsaariana
The Economist, tradução de Guilherme Russo, O Estado de S.Paulo, 19/04/2023
“Eu tenho dez filhos”, diz Rahama Sa’ad, de cócoras diante do barraco em que vive na periferia de Kano, maior cidade no norte da Nigéria. “É a vontade de Deus”, explica, em meio a galinhas, filhos e netos. É fácil encontrar famílias grandes na Nigéria. O empresário Abdulkadar Dutse é um dos 35 filhos que seu pai teve com 4 mulheres.
Essas histórias de famílias grandes falam muito a respeito da maneira que o mundo percebe a África Subsaariana em relação às próximas décadas. Em conferências e reuniões de gabinete em todo o continente, políticos e formuladores de políticas preocupam-se sobre como dar educação, emprego, moradia e alimento para uma população que, segundo a ONU, crescerá a uma velocidade vertiginosa, de 1,2 bilhão hoje para 3,4 bilhões até 2100.
No sul da Europa, populistas atiçam temores de que centenas de milhões de africanos poderão cruzar o Mediterrâneo para escapar de pobreza, guerra ou fome. No mundo rico, ambientalistas temem o impacto de outros 2 bilhões de pessoas sobre o clima e o planeta.
Mas poucos têm notado uma profusão de novos dados sugerindo que a taxa de natalidade na África está caindo muito mais rapidamente do que o esperado. Esse declínio poderia surtir um enorme impacto sobre a população total da África até 2100. E também ocasionar um grande impulso no desenvolvimento econômico do continente.
“Temos subestimado o que está acontecendo em termos de mudanças em taxas de fecundidade na África”, afirma Jose Rimon II, da Universidade Johns Hopkins. “A África, provavelmente, passará pelo mesmo tipo de mudança rápida que a Ásia passou.”
ESTIMATIVAS. O relatório mais recente da ONU, de 2022, continha estimativas mais baixas para a África Subsaariana do que duas décadas atrás. Para a Nigéria, que tem a maior população na África, de 213 milhões, a ONU reduziu sua estimativa para 2060 em mais de 100 milhões de pessoas (para 429 milhões). Até 2100, a ONU estima que o país tenha 550 milhões de habitantes, 350 milhões a menos do que se esperava uma década atrás.
Mas mesmo as projeções mais recentes da ONU podem não estar acompanhando o rápido declínio nas taxas de fecundidade (o número médio de filhos para cada mulher) que alguns estudos mostram. A queda mais acentuada foi registrada na Nigéria, onde uma pesquisa apoiada pela ONU, em 2021, detectou que a taxa de fecundidade tinha caído para 4,6, de 5,8 apenas cinco anos antes.
Esse número parece ser confirmado por uma outra pesquisa, apoiada pela USAid, a agência de ajuda humanitária dos EUA, que constatou uma taxa de fecundidade de 4,8 em 2021, contra 6,1 em 2010.
Se essas constatações forem corretas, elas sugerem que taxas de natalidade estão caindo a um ritmo similar ao ocorrido em certas partes da Ásia, onde a região testemunhou seus índices de crescimento populacional diminuírem drasticamente, em um processo com frequência classificado como transição demográfica.
Uma tendência similar parece estar emergindo em partes do Sahel, que possui algumas das taxas de fecundidade mais altas no continente africano, e da costa da África Ocidental. No Mali, por exemplo, a taxa de fecundidade caiu de 6,3 para ainda elevados 5,7 em seis anos. O mesmo ocorre em Gâmbia, onde o índice caiu de 5,6, em 2013, para 4,4, em 2020 E em Gana, onde ele caiu de 4,2 para 3,8 em apenas três anos.
Esses declínios aproximam a África Ocidental das taxas de fecundidade mais baixas vistas em grande parte do sul do continente. Os índices em queda já foram celebrados em lugares como Etiópia e Quênia.
Demógrafos estão divididos em relação a quanto acreditar em pesquisas recentes, particularmente porque os dados que elas produzem podem ter ruídos. “Quando vemos um declínio abissal na fecundidade, nossa premissa passa a ser que há algo de errado com os dados”, afirma Tom Moultrie, da Universidade da Cidade do Cabo.
Alguns apontam que as respostas para pesquisas que perguntam às pessoas o tamanho de família que elas desejam caíram pouco, mas nem todas as sondagens recentes fazem essa pergunta. Outros demógrafos reconhecem que os dados apontam para mudanças reais.
COLAPSO. Mas muitos alertam contra a comparação de índices de tipos diferentes de pesquisas. No entanto, mesmo comparando apenas dentro dos parâmetros da mesma sondagem, a tendência é evidente. Uma comparação transversal no caso do Níger, que possui as taxas de fecundidade mais altas do mundo, mas poucas pesquisas, mostra um declínio de 7,6, em 2012, para 6,2, em 2021.
Outros também reduzem suas projeções. Em 1972, o instituto de análise Clube de Roma publicou um livro determinante, Os Limites do Crescimento, alertando que o consumo e o crescimento populacional ocasionariam colapso econômico. Agora, a entidade afirma que a bomba demográfica nunca explodirá e a população da África Subsaariana pode atingir seu pico em 2060, 40 anos antes das projeções da ONU.
Apesar disso, as taxas de fecundidade não caem uniformemente. Alguns países, incluindo Angola, Camarões e Congo, estão travados em índices relativamente altos. E, com frequência, existem grandes diferenças regionais dentro de países como Quênia.
Quase em todo lugar na África as taxas de fecundidade são muito menores entre mulheres urbanas, que normalmente têm entre 30% e 40% menos filhos do que mulheres rurais.
Os demógrafos estariam mais inclinados em concordar que essas quedas em fecundidade são reais e tendem a continuar se pudessem identificar suas causas. Na Etiópia, no Quênia e no Malavi, declínios passados foram fortemente associados a maior uso de contraceptivos ocasionados por grandes esforços de governos. No Malavi e no Quênia, muito mais da metade das mulheres casadas usa contraceptivos modernos, como a pílula ou injetáveis, e na Etiópia 40% o fazem. O uso desses métodos é muito menor na África Ocidental, mas melhorias na base são, provavelmente, parte da razão das quedas da fecundidade. Na Nigéria, o uso de contraceptivos saltou de 11% para 18% nos últimos cinco anos. No Senegal, esse índice dobrou, para 26%, na década passada.
Planejamento familiar, especialmente quando promovido por forasteiros, com frequência enfurece líderes religiosos. Mas em alguns lugares isso pode estar mudando. Clérigos falam com mais frequência sobre planejamento familiar hoje em dia, nota Amina Mohamed, uma mãe muçulmana que vive na periferia de Kano.
“Nenhum verso do Alcorão proíbe os muçulmanos de controlar, planejar ou restringir o número de filhos”, afirma Shuaib Mukhtar Shuaib, um dos clérigos. “Maomé aprovava tacitamente métodos de contracepção.”
A educação de meninas também causa mudança nas taxas de fecundidade. Em Angola, por exemplo, mulheres sem escolaridade têm 7,8 filhos, enquanto as que possuem grau universitário, 2,3. Mulheres escolarizadas têm mais chance de conseguir emprego, então o custo de ficar em casa para cuidar de filhos é mais alto, e elas tendem a ganhar mais discussões com os maridos a respeito de quantos filhos ter.
Uma pesquisa de Endale Kebede, Anne Goujon e Wolfgang Lutz, do Centro Wittgenstein de Demografia e Capital Humano Global, sugere que uma pausa na transição demográfica na África nos anos 2000 pode ter decorrido do efeito de cortes em gastos na educação nos anos 80, quando muitas economias africanas enfrentaram crises.
As rápidas quedas em taxas de fecundidade de agora podem decorrer do enorme esforço para melhorar a educação de meninas empreendido nas décadas recentes.
Economistas tendem a pensar que famílias pobres têm mais filhos para garantir que alguns sobrevivam para cuidar dos pais na velhice. Mas essa lógica também pode estar mudando. Zainab Abubakar, uma mãe de 30 anos que trajava um hijab azul na periferia de Kano, tem dois filhos, mas não quer mais nenhum. “O custo de vida é alto”, afirma Abubakar, que trabalha como vendedora de carvão.
Ela não está só. Quando a economia nigeriana piorou, entre 2013 e 2018, o índice de mulheres que não queriam mais filhos saltou de 19% para 25%. Conforme os custos de criar os filhos aumenta, cada vez mais os pais se preocupam com a possibilidade de não conseguir educá-los.
Líderes também desempenham um papel. Em Uganda, o presidente Yoweri Museveni costumava dizer a estudantes: “Sua tarefa é produzir filhos”. Agora, ele diz às mulheres ugandenses que gestações consecutivas “enfraquecem seus corpos, e não é fácil cuidar de muitos filhos”.
O presidente do Níger, Mohamed Bazoum, fez da “luta demográfica” o centro de sua campanha eleitoral. Na Nigéria, o financiamento para planejamento familiar é baixo, mas o presidente Muhammadu Buhari criou um Conselho Nacional de Gestão Populacional, sublinhando “a urgência em combater a taxa de fecundidade da Nigéria por meio de expansão no acesso ao planejamento familiar moderno”.
TEORIAS. No passado, muitos políticos da África suspeitavam que o impulso ocidental em promover planejamento familiar era um ardil para evitar que os países africanos se tornassem populosos e fortes. Essas atitudes são mais raras hoje em dia.
Lamentavelmente, outra forma sinuosa de pensamento formou raízes entre ambientalistas ocidentais, que ligam o crescimento populacional da África às mudanças climáticas. Mas os ocidentais abastados causam muito mais emissões de gases-estufa do que os africanos.
Preocupações sobre migrações para a Europa também parecem peculiares, já que deverão faltar à União Europeia e ao Reino Unido 44 milhões de trabalhadores até 2050, mesmo com os fluxos normais de migração.
À parte as preocupações equivocadas do Ocidente, implicações de declínios contínuos ou acelerados de taxas de fecundidade são enormes. Para começar, a população africana – e, portanto, a do mundo – deverá ser bem mais baixa do que a maioria das projeções atuais.
Veja a Nigéria. Se as pesquisas estiverem corretas em estipular sua taxa de fecundidade em 4,6 em 2021, isso sugere que o país já estava em um patamar mais baixo do que as estimativas da ONU e em uma trajetória de fecundidade muito mais descendente do que a principal projeção da ONU.
Supondo que a Nigéria permaneça nessa trajetória descendente, sua população chegaria a 342 milhões em 2060. São cerca de 90 milhões de pessoas a menos do que a atual estimativa da ONU e 200 milhões a menos do que sua projeção de dez anos atrás.
Isso é boa notícia, mas não, conforme alguns assumiriam, porque a África esteja sobrepovoada. Na verdade, a África Subsaariana tem uma média de 48 pessoas por quilômetro quadrado, muito menos do que Reino Unido (277), Japão (346) ou Coreia do Sul (531). Todos os cinco países mais populosos da África Subsaariana possuem densidade demográfica menor do que a britânica.
Há pouca evidência de países africanos inteiros caindo na armadilha malthusiana, batizada em honra a Thomas Malthus, cuja teoria afirmava que o crescimento da população superaria a produção de alimentos, ocasionando catástrofe.
O advento do comércio e da produção global de alimentos, que cresce enquanto a quantidade de terra usada diminui, torna possível que nenhuma sub-região ou país precise ser autossuficiente, contanto que suas economias produzam riqueza para comprá-los.
“Os dados que temos não são claros a ponto de podermos afirmar com certeza que a taxa de crescimento populacional seja em si ruim ou boa”, afirma Anne Bakilana, do Banco Mundial.
BENEFÍCIOS. É evidente que a transição de altos índices de crescimento populacional para taxas menores pode ocasionar uma série de benefícios. Mulheres e crianças tendem a prosperar mais conforme as taxas de fecundidade caem.
Quedas na fecundidade normalmente resultam em hiatos maiores entre os nascimentos e menos gestações de adolescentes: ambos os fatores ajudam a reduzir riscos à saúde das mães. E taxas de fecundidade em queda significam que há mais adultos em idade de trabalho em relação ao número de filhos. Com menos bocas para alimentar, é mais provável que todos os filhos comam o suficiente e obtenham livros e uniformes para ir à escola.
Em nível nacional, núcleos familiares menores permitiriam aos governos gastar mais com cada criança. Taxas de fecundidade em queda animam economistas, pois impulsionam tanto a faixa da população em idade de trabalho quanto o número de mulheres que integram a força de trabalho. Mais gente trabalhando impulsiona prosperidade. Quanto mais veloz é a queda nos índices, maior é o impacto.
Um estudo de 2017 de Mahesh Karra e David Canning, da Universidade Harvard, e Joshua Wilde, da Universidade do Sul da Flórida, estima que baixar a taxa de fecundidade em um filho por mulher na Nigéria poderia quase dobrar sua renda per capita até 2060.
Mas, para países colherem um grande dividendo, aqueles que entram no mercado de trabalho precisam conseguir encontrar empregos produtivos – um desafio monumental em um continente que precisa investir trilhões de dólares em estradas, linhas de fornecimento de energia e portos.
Índices de fecundidade parecem enfadonhos quando confrontados com dramas eleitorais, conflitos e caos econômico. Mas, pesquisa após pesquisa, a maior notícia sobre o futuro da África pode estar se revelando silenciosamente.
ARTIGO940